Hoje, fazendo um retrospecto da minha vida como policial federal, percebo que, em várias oportunidades, entrei em contato com o crime institucionalizado e pressenti, como quem pressente uma assombração, a presença da entidade. Ele, de fato, me bafejou, aqui e ali, deixando pistas de sua existência. Contudo, nessas situações, não o identifiquei como tal, pois, de tão gigantesco, nunca logrei uma visão suficientemente distante para entendê-lo em sua amplitude. E o curioso é que, em cada uma dessas vezes, eu sentia um sobressalto, como que percebendo um ente traiçoeiro e o quanto eu e a minha instituição eram como joguetes para aquela criatura que preenchia todos os espaços existentes.
Afinal, ninguém consegue aferir a extensão de algo sem se afastar. Não se vislumbra um panorama de perto ou de dentro — é preciso distanciar para compreender a forma de qualquer gigante. Se me encontro em um buraco muito grande, não percebo o buraco; na verdade, o buraco me parece o meu próprio universo. A construção do conhecimento sobre esse fenômeno da justiça criminal ocorreu pelo conjunto de aparições. Daí, para entender que aquela entidade tinha em mãos, para cometer crimes, as rédeas do próprio Estado, de governos em sequência, foram anos a fio.
Era como ver, num mar bravio, uma baleia que vem à tona em situações distintas, ora deixando-se ver por uma parte do seu dorso, ora por uma ponta de sua barbatana, ora por um esguicho de vapor, ora largando a boiar o seu âmbar. Vi as partes, vislumbrei os redemoinhos na água, mas sem ver o todo. Para mim, um delegado federal, não poderia haver pesadelo maior do que a presença de uma entidade criminosa nos mais altos extratos da República, algo acima dos meus chefes e do até do meu ministro.
Ao final, as evidências se confirmaram quando um grupo de mulheres e homens mergulhou no abismo, como nunca ninguém antes o fizera, trazendo o corpanzil do monstro à superfície. Foi a operação de Curitiba que, de fato, desnudou-o cabalmente. A verdade é que, para a maioria de nós, federais, até a Lava Jato éramos como mariscos que vivem vidas inteiras nas costas de uma grande baleia, sem saber sequer da sua existência.
O livro que estou publicando, “Crime.gov — Quando a Corrupção & Governo se Misturam”, com o meu amigo e parceiro Márcio Anselmo, é para mim um grito, um desabafo. Tenho uma necessidade que vem do fundo do meu peito de dividir com as pessoas essa minha experiência, essa minha percepção. Quero mesmo desmascarar essa elite política que amarra meu país no passado e que não faz outra coisa que não seja defender o atraso.
E esse momento me remete a um dia, quando vinha andando pela rua onde morava, no Jardim Botânico, nos meus 16 anos, a caminho de uma prosaica partida de botões na casa de um amigo. Um bêbado interrompeu meu caminho e, segurando-me pelos braços disse, lançando perdigotos de conhaque no meu rosto, que um dia eu deveria “arrancar a máscara da sociedade”. Aquilo me pareceu absurdo, mas, hoje, ao escrever esse livro que desnuda a criminalidade do andar de cima e traz a enorme baleia do “Crime.Gov” até a superfície, acho que, de alguma forma, o velho bêbado estava certo.
Jorge Pontes, de 58 anos, é carioca, delegado da Polícia Federal, especializado em justiça criminal pela Universidade da Virgínia. Está lançando “Crime.gov — Quando corrupção e governo se misturam”, com Márcio Anselmo, o delegado federal que deu início à Lava Jato, na Livraria da Travessa, no Shopping Leblon, às 19h do dia 4 de abril.