A audiência terminou, e eu não conseguia voltar ao gabinete. Emocionada, tentava lidar com a impotência, diante do esquecimento. Poucos minutos antes, uma senhora muito idosa, olhando para o nada, sentara à minha frente. A filha falava por ela, e explicava-me que a mãe lecionara a vida toda. Poeta e doutora em Letras, aquela mulher, que outrora declamava Fernando Pessoa de trás para frente, não sabia mais quem era, nem o que fazia ali. A filha precisava de uma curatela para receber a aposentadoria. O processo resolveria objetivamente a questão, mas o que fazer para aplacar a dolorosa experiência da família diante da perda da memória e do silêncio da voz?
Acostumada a decidir e sentenciar, depois de quase duas décadas como juíza em uma Vara de Família, fui removida para outro Juízo, com competência para a matéria sucessória, tutelas e curatelas. Não imaginei que a experiência pudesse ser tão intensa e transformadora. Os processos são pouco complexos na perspectiva jurídica. Do ponto de vista humano, no entanto, deparei com conflitos decorrentes do envelhecimento e das limitações da vida com autonomia. A partir de então, além dos inúmeros conflitos envolvendo a velhice, comecei a perceber que estava cercada de velhos por todos os lados – pais, familiares, amigos – e que também eu envelhecia. O contato diário com a ação do tempo inicialmente me paralisou. Aos poucos, a angústia cedeu espaço à escuta cuidadosa, e comecei a escrever histórias, que se transformaram no livro “Velhos são os outros”. O fato a seguir, narrado no prefácio, traduz, com clareza, o que venho sentindo desde então. Durante um café da manhã, curiosa, perguntei à minha mãe:
– Quando é que você se percebeu velha? Aos 77 anos, e surpresa com a pergunta, encerrou a conversa:
– Nunca! Eu ainda não sou velha! Tentando amenizar e fazer com que ela pudesse responder, sem preconceito, à minha inquietação, prossegui:
– Mas mãe… Falo da velhice como idade, não como sentimento. Somos crianças e torcemos para a adolescência chegar. Reconhecemos o tempo da juventude; depois, amadurecemos e nos percebemos adultos e responsáveis. Em seguida, vem a velhice. Não é assim?
– Andréa, ela ponderou, queremos ser adolescentes para experimentar as novidades que a vida traz. Queremos amadurecer para ter autonomia, segurança, liberdade. Mas quem quer envelhecer? Depois que a velhice chega, o que vem?
A pergunta seguiu-se de silêncio. Sem resposta, diante do desconhecido e sentindo uma certa melancolia, entendi que o tempo nos ignora e deixa marcas e acúmulo de passado. É esse acervo que nos define como “velhos”. Aos poucos – e não sem dor -, constatei que minha grande inquietação era a impossibilidade de compreender um tempo que estará sempre diante de mim. Todos envelhecemos. E sempre haverá mais tempo adiante. Os que estão atrás não nos alcançarão, e nós não alcançaremos os que nos antecedem. Depois da velhice, vem mais vida. E mais vida. E mais vida… Que o tempo nos seja leve, bem-humorado e generoso!
Andréa Pachá é juíza e escritora. A série “Segredos de Justiça”, de muito sucesso no “Fantástico”, foi baseada em seus livros “A vida não é justa” e “Segredo de Justiça”. Andréa acaba de lançar “Velhos são os outros” (editora Intrínseca). A foto é de Léo Aversa