Marcia Noleto perdeu a única filha – ela também tem um menino – naquele acidente aéreo, na Bahia, quando morreram sete pessoas, em junho de 2011. O então governador Sérgio Cabral, seu filho Marco Antonio e a namorada, Mariana Noleto, de 20 anos, também participaram da viagem. Ela, entre as vítimas.
A dor de perder uma filha transmutou a vida de Marcia, à época, secretária do consulado da França, quando organizava jantares e festas – tudo isso ficou no passado. No auge do seu luto, Noleto resolveu estudar Psicologia, dividindo sua vida entre antes e depois da tragédia: “Durante os meses que sucederam a esse episódio, em uma sessão de terapia, me perguntei como poderia ressignificar a minha vida. Foi então que resolvi procurar outras mães que tivessem passado pela mesma experiência. Queria que elas me dessem pistas, que me ensinassem como sobreviver a essa dor”, diz Marcia, afirmando ainda que todo sentido da vida desapareceu.
Foi assim que ela começou a transformar a dor (inclusive a favor do outro), se dedicando ao grupo “Mães Sem Nome”, há sete anos: para mulheres na mesma situação. “Sem nome, porque a dor de perder um filho é tão avassaladora que a história da humanidade não conseguiu nomear esse sofrimento. Temos a palavra ‘viúva’, a palavra ‘órfã’, mas não existe para a mãe que perde um filho. Esta é inominável”.
Atualmente, Marcia tem um consultório no Largo do Machado, e faz ainda trabalho social na Terra Mater (Barão de Guaratiba, 29, Glória) cobrando apenas uma taxa (já que a sala é alugada), mas jamais deixou de atender alguém por não poder pagar. Contatos pelo ([email protected]).
Você dividiria a vida em antes e depois da tragédia com a sua filha Mariana?
Dividiria, sem dúvida, morri junto com a Mariana; é impossível parar por isso, sem rever todos os conceitos. Aquela Márcia que era secretaria do cônsul da França, que organizava eventos, ficou no passado. O que me interessa é ouvir as histórias das pessoas. Atualmente, ninguém quer escutar mais ninguém.
A sua mudança de profissão tem o que a ver com a história?
Tem tudo a ver. Cheguei a um nível de sofrimento que precisei entender o meu como sendo o do outro.
O que descobriu em si depois disso tudo?
Descobri que tenho de viver cada dia com muita intensidade, oferecendo meu amor no mesmo nível. A vida se esvai de uma hora pra outra, tudo pode sair do controle. Não adianta, por exemplo, fazer projetos, achando que eles vão dar 100% certo; às vezes, é impossível – quando acontece uma tragédia, a gente descobre a relatividade das coisas e que não tem controle sobre nada.
É possível ser feliz mesmo com uma perda dessas?
Cem por cento não; vai ter sempre um lugar onde sentimos em nós mesmos que perdemos o bem mais precioso. Mesmo sabendo que perdeu o que não podia perder, tem que achar uma fórmula de encontrar prazer na vida, ou você se acha num lugar onde não existe prazer nas coisas que você faz e vive. Desestrutura completamente, tirando a força, a energia, a gente tem que se reencontrar, se refazer, ser generosa consigo mesmo. É sentir que é preciso seguir. Superar não é esquecer, é ter uma ação pra vida, preciso fazer esse exercício.
As pessoas têm um “apego” ao luto. Que saída você sugere a quem está vivendo uma dor como a sua?
Olhe em volta e vai encontrar muita gente na mesma situação, histórias terríveis. Nossa dor nunca é maior que a dor do outro – acredite, sempre tem um sofrimento maior. Não ficar buscando um porquê – aí, tem o mistério da vida: me reconciliei com ele. Foi por esse viés que tentei entender: essas coisas não estão nas minhas mãos.
Que tipo de pessoas atende no consultório?
Atendo muitos casos que não são necessariamente ligados a essa temática, mas não posso negar que muita gente me procura sabendo que me especializei no assunto. Além de atender os pacientes, organizo grupos de estudos sobre luto, faço palestras, grupos de apoio e tento, sempre que é possível, apresentar minhas pacientes a outras mães que passaram por histórias semelhantes. Dessa forma, elas podem percorrer o caminho da troca e da busca de novas possibilidades para as suas vidas.
E a “Cartilha Jurídica do Luto”?
Participei do projeto de elaboração da “Cartilha Jurídica do Luto” com os estudantes de Direito da Fundação Getúlio Vargas. A cartilha tem como objetivo tirar dúvidas jurídicas e está disponível online. Hoje, formada em Psicologia, faço inúmeros cursos sobre o tema. Não paro de estudar. Minha monografia foi sobre “Luto Materno”.
Em algum momento, você culpou alguém, o Marco Antônio Cabral, o Sérgio Cabral, a si mesma, a Deus, enfim, existiu esse momento?
Não nunca culpei ninguém, foi um acidente. Briguei com Deus, levei um bom tempo buscando um porquê; quanto mais você busca, mais tem possibilidade de enlouquecer. Não se briga com fatos.
Você ainda tem contato com a família Cabral, com o Marco Antonio? Como foi isso depois do acidente e hoje?
Marco Antonio é um filho pra mim, gosto muito dele, sem contato diário, mas torço muito por ele.
Foto: Tainá Lima