O Rio de Janeiro é uma rara combinação da beleza da natureza com o talento humano. Ao mesmo tempo, é, também, em certas áreas, uma combinação dessa natureza com a degradação provocada pelas mesmas criaturas. O esforço dos habitantes e de vários governantes é evitar que esse aspecto invasivo, degenerador, destrua as coisas boas que a natureza deu ou que as mãos humanas criaram.
Os bairros de Ipanema e Leblon estão entre elas. As avenidas Vieira Souto e Delfim Moreira, largas, arborizadas, ladeadas de praias urbanas, como não se encontram em nenhum outro lugar, constituem um patrimônio incalculável. Os edifícios do bairro exaltam o bom gosto dos jovens arquitetos que os criaram, corrigidas as distorções de Copacabana. O comércio nesses bairros é moderno, alegre, cordial – criador de moda admirada em todo o mundo, repleto de farmácias, restaurantes tanto populares quanto da mais alta categoria. O sonho dos moradores é que os bairros sejam mantidos assim: o lar de quem dedica seus dias ao trabalho e quer usufruir de um lugar digno para descansar, viver e criar suas famílias.
Pois no último réveillon e agora, no carnaval, os dois bairros foram contaminados por estranhos que, em conluio com alguém na Prefeitura, apoderaram-se de 3 hectares de espaço público na areia do Leblon, ao lado do Jardim de Alah (portanto, bem no meio entre Ipanema e Leblon e com um corredor para a Lagoa) e instalaram ali o mais odioso dos pancadões, alimentado por enormes geradores que fazem tocar, no mais alto volume que se possa imaginar, gigantescos alto-falantes. Como se tivessem instalado centenas de caminhões diesel poluindo os bairros com uma fumaça intoxicante, o som insuportável invade casas, apartamentos, hotéis, escolas, igrejas, clínicas do Leblon, do Vidigal, da Cruzada São Sebastião, da Lagoa, de Ipanema, do Arpoador — das 2 da tarde às 10 da noite, 8 horas de gritaria, de pancadas, funk, rap e axé.
A tortura aos moradores começou no dia 10 de fevereiro e vai até o dia 18, diariamente! Vi vários moradores indo ao pancadão reclamar do som, só para encontrar duas senhoras indiferentes, rodeadas de seguranças, desprezando as reclamações e dizendo que têm “licença da Prefeitura”.
Alguns cartazes informam que a esbórnia, chamada de “CarnaSensa”, é promovida por uma agência de nome FAÇA, por ironia, localizada na Rua do Ouvidor. Não há uma só referência a que órgãos da Prefeitura ou de preservação do meio ambiente tal licença foi pedida. A referida agência, da qual nenhum publicitário sério jamais ouviu falar, declara-se “agenciacriativa” e, no Instagram e no Facebook, adota o nome “faca”, que revela melhor seu propósito.
Aparentemente, o evento não tem patrocinadores, mas, em troca de R$100,00, você pode entrar no cercado da praia e receber 8 garrafas de cerveja Heineken. Não sei se a Heineken entrou na promoção, mas certamente não é uma atitude boa para a sua imagem.
Agora, como é que alguém se apodera de 2 hectares de espaço público, em plena praia, privatiza a área para cobrar entrada, inferniza os vizinhos, deixa o entorno sujo e fedido? E o pior é que, no fundo, é uma ideia de jerico: tenho fotos mostrando que, na área interna, há umas 100 ou 200 pessoas (que toparam pagar 100 reais), e, atrapalhando o trânsito da Vieira Souto, uma pequena multidão que ouve a música, bebe e dança sem pagar nada. E sai surda, como toda a vizinhança.
Conversando com um grupo de cariocas apaixonados pelo Rio, dedicados agora a agir no sentido de recuperar a imagem da cidade — um dos grandes patrimônios turísticos do mundo —, soube que Marcelo Alves, da Riotur, achou um absurdo o que estava acontecendo e, em pleno carnaval, conseguiu cassar a licença da tal agência e implantar um procedimento administrativo para verificar quem assinou a autorização. Infelizmente, porém, na Quarta-feira de Cinzas, o baticum voltou com mais força ainda, e com letras de funk mais picantes – como um desafio!
Quando escrevi o artigo “O barulho enlouquece”, alguns colegas me perguntaram se eu eu não temia estar sendo politicamente incorreto. Eu pedia às empresas de eventos que estabelecessem um código de ética para que sua matéria-prima, a música, não se transformasse numa arma que acabasse voltando-se contra toda a nossa profissão. Esse caso do Leblon me faz envergonhar de ser publicitário.