O diretor Charly Braun – o nome é Carlos, mas Charly foi o apelido de criança que ficou – acaba de colocar em cartaz seu segundo longa, “Vermelho Russo”, premiado no Festival do Rio de 2016 como Melhor Roteiro. Charly prefere chamar de crônica sentimental a coprodução entre Brasil e Rússia, na qual as duas atrizes, Martha Nowill e Maria Manoella, fazem o papel delas mesmas ao contar na tela, oito anos depois, o período em que viajaram para aquele país para estudar o método Stanislavski.
A ideia partiu de Charly ao ver potencial na história contada por Martha no seu diário publicado na revista Piauí – ele estava à procura de um assunto mais denso que o do seu primeiro filme, “Além da Estrada”, que pudesse provocar uma reflexão maior, sem se transformar num longa pesado demais. O meio irmão da atriz Guilhermina Guinle parece ter atingido muito bem seu objetivo: o público chega a rir de determinadas cenas, uma reação não prevista pelo diretor, que também classifica “Vermelho Russo” como uma comédia dramática.
Em sua ainda curta carreira, Charly, depois de ter estudado cinema no Emerson College (Boston, EUA), já buscava novos caminhos: ele fez um filme para a internet com vários finais possíveis (17 Life Fables) quando o Youtube ainda nem existia. Depois, estreou em curta com “Quero ser Jack White”, também logo premiado. Paralelamente, foi investindo em trabalhos como ator de teatro (Os Sete Afluentes do Rio Ota) de cinema ( Meu nome não é Johnny) e comerciais. Dirigiu, também, o videoclipe “Bitter Tears” para o cantor americano Rufus Wainwright. Com humildade (um grande passo na vida!), Braun vai lapidando sua delicada sensibilidade e quem ganha é o público, que acompanha com prazer um trabalho com frescor, elegância e irreverência.
O que foi decisivo, no diário da Martha Nowill, para que você se interessasse em transformar a história de duas amigas atrizes que vão para a Rússia estudar teatro em roteiro de cinema?
“Fiquei encantado quando li o diário da Martha na revista ‘piauí’. Ela escreve muito bem, era um texto com muita fluidez e um tipo de humor que me pega. Os temas daquela narrativa também me são caros: o afeto profundo, as dificuldades da convivência, a vida no teatro, a superação artística, a sensação de desterro, as dificuldades de comunicação… Aquilo tudo era um prato cheio para mim, mas o que mais me interessou foi a possibilidade de se fazer um filme de baixo orçamento que transitasse no limiar da ficção com o documentário. Para uma obra que fala de representação, de verdade, do trabalho do ator, isto era muito interessante”.
No período em que você e a equipe do “Vermelho Russo” ficaram filmando na Rússia vocês também passaram por algum choque cultural, como as personagens?
“Sem dúvida, o choque cultural é imenso. A Rússia fica na Ásia (embora Moscou ainda esteja na parte europeia), o alfabeto cirílico é impossível e o país passou mais de meio século sob um ferrenho regime comunista. É outro universo. Mas este choque é muito rico, faz com que a gente pense mais sobre nós mesmos, sobre a nossa cultura e o nosso país”.
Sua primeira experiência como diretor de cinema foi um filme exclusivamente para a internet (17 Life Fables). Qual é sua relação com a internet atualmente, o que acha das redes sociais?
“Naquele momento (2001), não existia Youtube e era o início dos vídeos na internet. Era bem difícil até porque muitas pessoas só tinham conexão com a rede via linha discada (lembram daqueles barulhos?). Me interessou explorar as possibilidades narrativas que a interatividade possibilitava. Hoje em dia estamos entrando na era da realidade virtual, as coisas evoluíram bem rápido. Eu acho as redes sociais interessantes, recentemente comecei a usar o Snapchat e logo depois o Instagram lançou os seus ” stories”, que são bastante parecidos ao que o snap trazia. De alguma maneira, todas as pessoas estão criando suas próprias mini narrativas. Às vezes são interessantes, não deixam de ser comportamento humano. Mas em geral esse excesso de autorrepresentação, de ego envolvido é cansativo e mais esvazia que soma. Acho que as pessoas estão um pouco viciadas demais”.
A Guilhermina Guinle, sua meio irmã, teve alguma influência na sua decisão de ser ator?
“Acredito que sim, de alguma maneira ela abriu um precedente. Meus pais sempre tiveram amigos no meio artístico e são bastante ligados em artes em geral. Minha mãe dançou ballet no Municipal, é arquiteta. Meu pai é filho de acadêmico, é alguém que lê muito, consome muita cultura. Mas de alguma maneira a Guilhermina ter se dedicado profissionalmente a uma carreira nas artes ajudou. Eu fui fazer teatro na escola, depois passei pro cinema, fiquei fazendo as duas coisas durante um tempo e hoje me vejo muito mais como diretor. Mas às vezes faço umas participações especiais (rs)”.
Ter estudado cinema nos EUA fez diferença para você?
“Do ponto de vista acadêmico acho que poderia ter tido uma formação muito boa aqui, existem excelentes faculdades. Acho que foi importante ter morado fora, ter morado sozinho, ter passado por essa experiência. Quando me formei, ainda passei um ano e meio lá, fiz estágios em Hollywood, trabalhei no degrau mais baixo da industria, ralei mesmo. Foi importante ter essa consciência do tamanho de tudo e do quanto o trabalho e a disciplina são importantes nesse ofício”.
No seu primeiro curta, “Quero ser Jack White”, você ganhou o prêmio de Melhor Curta no Festival do Rio, em 2004. No mesmo festival, seu filme “Além da Estrada” (2010) foi premiado como Melhor Direção e, ano passado, “Vermelho Russo” venceu na categoria roteiro. Isso não está deixando você mal acostumado? (rsrs)
“Pois é… (rs). No meio do caminho teve um outro curta que passou lá e não só não levou prêmio algum, como ainda foi esculhambado no ‘Globo’. Mas o legal nessa história do Festival do Rio, para além da importância que ele tem como porta de entrada de tantos bons filmes brasileiros, é que antes de ter filme no festival eu já era frequentador. Quando fui morar no Rio, em 2002, passei a frequentar e me apaixonei pelo Fest Rio, acho um dos grandes eventos da cidade e é uma época deliciosa, onde você passa o dia no cinema entrando em contato com o mundo todo”.
Voltando a “Quero ser Jack White”, as cenas de sexo entre os dois personagens adolescentes ficaram bem naturais. Você parece ser um diretor muito generoso e doce. É essa a sua fórmula para deixar os atores mais livres e soltos?
“Talvez por trabalhar como ator e por ter estudado teatro eu entendo um pouco do funcionamento de um ator, e o principal ensinamento é que cada ator funciona de um jeito. Respeito muito as particularidades de cada um e para isso costumo me tornar bastante próximo deles, conhecê-los. Eu gosto muito de atores e acho que eles de mim, todos com quem trabalhei são amigos até hoje e querem trabalhar comigo de novo (rs)”.
Que lembrança interessante você tem da participação como ator em “Meu amigo hindu”, último filme de Hector Babenco?
“Eu estava sem atuar há um tempo, estava um pouco enferrujado (rs). Então fiquei muito nervoso, pois era uma participação pequena mas eramos só eu e Willem Dafoe em cena, contracenando. E o Babenco dirigindo! Imagina o nervosismo. Mas os dois foram extremamente gentis e generosos comigo e no fim acho que não passei vergonha (rs)”.
Nos seus dois últimos filmes você acumula as funções de diretor, produtor, roteirista e montador. Você é muito centralizador?
“Por um lado eu diria que sim, e é algo que eu gostaria de mudar em mim, até para ter mais tempo de dirigir mais coisas. Por outro, o cinema envolve muita gente e é difícil fazer com que sua visão atravesse todas elas. E meu cinema é quase artesanal, e todas essas funções envolvem aspectos fundamentais na criação de um filme, então participo muito ativamente em todas elas. Mas com exceção da direção, divido as demais funções com colaboradores próximos”.
numero: 10 Você já reclamou da dificuldade que um cineasta iniciante tem para inscrever um longa em festivais internacionais, apontando que o diretor precisa ser apadrinhado por alguém mais conhecido. Quais são os outros desafios para quem decide ser cineasta no Brasil?
“Se eu começar a listar todos, pode ser que algum leitor seu, que seja um potencial grande cineasta, desista da carreira, então vou me conter (rs)”.