A filósofa Marcia Tiburi, entre tantos outros textos acadêmicos, está publicando seu quinto romance, “Uma fuga perfeita é sem volta”, pela Record. O lançamento é na quarta-feira (14/09), na Travessa de Botafogo, às 19h. O livro fala sobre a comunicação na era da incomunicabilidade, as relações de amizade em tempos de falsidade e do interesse, o corpo nessa época tão sexualizada e a fé como mercadoria. Ex-professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, em São Paulo, entrando para o grupo de professores da UniRio e colunista da revista Cult, mãe e artista plástica, Tiburi se mantém lúcida e clara, sempre contundente quando se trata de defender a liberdade de expressão e política – ela não esconde, nessa entrevista, sua insatisfação com o momento que o Brasil está vivendo – “seja qual for o nome deem a isso, ‘impeachment’ ou ‘golpe'”.
O livro “Uma fuga perfeita é sem volta” começou por causa de um sonho recorrente seu. Poderia nos contar como era esse sonho? Você é uma pessoa que sonha muito (oniricamente falando) e aproveita o que vem daí no seu trabalho como escritora e artista plástica?
“Pois é. Eu sonho. Sempre sonhei muito. Inevitavelmente, gosto muito de ler sobre sonhos. De ler livros de sonhos. Mas penso que as explicações psicanalíticas para os sonhos que são interessantes também restringem sua potência. Eu, particularmente, nunca soube o que fazer com eles. Aos poucos, os sonhos foram se tornando também uma questão literária. Coloquei alguns em meus livros, como se a tarefa da literatura fosse guardar os nossos sonhos, achar uma morada para esses conteúdos desprezados pelo tipo de sociedade imediatista em que vivemos. Mas, nesse livro, depois que decidi começá-lo a partir de um sonho, eu coloquei vários outros. Os sonhos do protagonista são quase todos meus. Há alguns sonhos emprestados de outras pessoas. Quem conta um sonho a um escritor, não imagina onde ele pode ir parar…
O sonho que deu início ao livro era o seguinte: eu telefonava para uma de minhas irmãs, e ela começava a me contar coisas triviais do dia a dia, fazia comentários banais e, no meio deles, como que expondo uma lista de banalidades, dizia que nosso pai tinha morrido. Sem nenhuma pretensão de novidade, como se o mais elementar dos fatos tivesse sido comentado, ela contava algo que me estarrecia e eu pensava: que tipo de família eu tenho que não é capaz de me contar uma coisa dessas? Como minha irmã pode considerar desimportante que nosso pai tivesse morrido? Como poderiam desconsiderar o meu direito a saber de sua morte? Se formos para a questão psicanalítica, fica interessante, talvez eu tivesse um ‘complexo de Antígona’, mas a literatura tem tudo a ver com isso. O trabalho da imaginação é absolutamente essencial à vida humana. Aliás, em um tempo como o nosso, a imaginação é combatida, tolhida, destruída para a melhor colonização do espírito. A literatura é uma arma de luta pelo espírito, aquilo que se destrói em certas épocas. Acho que estamos em uma época assim”.
O protagonista da história é uma pessoa muito solitária. Ser uma intelectual num país que não valoriza tanto esse trabalho te dá solidão?
“O tema da solidão é fascinante. É um tema moderno que nós herdamos. Não há o registro da solidão em todas as culturas, nem em todos os tempos. Ele me interessa porque faz parte do nosso imaginário moderno, urbano, individualista. Faz parte da ilusão capitalista e nos pega, com força. O que eu quero dizer com isso é que não podemos pensar nada fora das condições históricas vividas pelas pessoas. Eu vejo a solidão como um direito e a fuga como o caminho que leva à solidão, mas sei, ao mesmo tempo, que a solidão foi produzida pelas condições sociais e econômicas. Essa questão está ali na vida do personagem que foi um menino pobre e se tornou, depois, um cidadão comum, funcionário de um museu. Ao mesmo tempo, e essa é uma parte fundamental do romance, ele é um trabalhador com suas obrigações de funcionário. Entre acomodado e ressentido, ele medita sobre a solidão na solidão. A qualidade das relações possíveis nessas condições é muito diferente.
Às vezes, como muita gente, talvez como todo mundo, eu também me sinto só. Mas em um sentido um pouco diferente. Na vida acadêmica, muito mais no que em outros espaços, eu me senti só, mas isso não foi suficiente para me fazer ceder do meu jeito de ser ou de realizar o que podemos chamar de trabalho intelectual. Bom sublinhar que dá muito trabalho. Muito, mas muito trabalho. E apesar disso, o trabalho intelectual não faz sentido para muita gente. Minha família, por exemplo, nunca entendeu, nem se importou com o que eu fazia. No caso, o trabalho intelectual de uma mulher importa menos ainda. E de uma mulher brasileira importa menos ainda. E se formos pensar na escala dos preconceitos, se eu fosse uma mulher, além de tudo, negra, então eu teria que mostrar que sou melhor do que sou, digamos assim, para ter um mínimo de reconhecimento e respeitabilidade. Só que eu sou, na prática, uma otimista, e sigo fazendo o que gosto e aquilo no que acredito, dentro de meus limites, evidentemente”.
Como foi a rotina para escrever mais de 600 páginas? Você mantém uma disciplina rígida quando está escrevendo um livro? Nos dias menos inspirados se força a escrever?
“Eu tenho uma rotina muito simples quando estou escrevendo um livro. Acordo cedo, escrevo, sobretudo, de manhã. Verdade que escrever não acontece sem intervalos e intermitências, por isso, um livro desses demora tantos anos pra ficar pronto. Esse livro foi iniciado em 2012. A última versão dele chegou à editora há alguns meses e para finalizá-lo levei cerca de um ano. A finalização implica releituras com horas incansáveis de trabalho no meio de muitos outros compromissos. Depois vem a revisão – e mesmo assim escapam erros de digitação ou coisas do gênero. Quando está nessa fase, eu acordo e vou dormir com o livro. As pessoas que veem um livro volumoso como esse podem pensar que planejamos fazer um livrão, o que eu não acho ruim, nem bom, mas o fato é que a história pede um tempo e um espaço para se desenvolver. É como um corpo. Aliás, é como cabelo que cresce. E eu cortei muito do texto. Ele poderia ter ficado ainda maior”.
Como você lida com o uso das redes sociais por sua filha, que é jovem, já que se preocupa tanto com o que chama de comunicação na era da incomunicabilidade?
“A minha filha sabe há bastante tempo que a vida está fora das redes, ainda que as use um tanto, já usou mais e já descobriu para que servem, viu que precisam ser usadas como meios, justamente e não como fins. Pelo menos, me parece que é assim. Ela estuda filosofia e adora ler, de modo que vejo que está relativamente protegida da imbecilização à qual estamos, de um modo geral, todos condenados. Eu sempre incentivei o uso das tecnologias, ela é até mais crítica na prática e no uso das redes do que eu”.
Você se posicionou dizendo que a ocupação das escolas foi uma das melhores coisas que aconteceram na política brasileira recentemente. Os adultos estão acomodados? Estamos dependentes da energia da juventude?
“Sempre disse a mim mesma que jamais trairia os ideais da jovem que eu fui. Talvez envelhecer seja esquecer que um dia fomos jovens e que sonhávamos com um mundo diferente, melhor, mais justo. Eu tento me lembrar disso todos os dias, dessa orientação juvenil que parece hoje em dia ingênua, sobretudo se usamos os óculos do pessimismo e do comodismo que a vida adulta nos faz usar. Quanto mais o tempo passa, mais eu sinto a urgência de voltar, pessoal e impessoalmente, a esse motivo utópico da minha juventude. A juventude de hoje nos faz lembrar dessas utopias. Do dever que temos para com quem fomos um dia”.
No seu texto ‘Abate neoliberal’, postado agora dia 7 de setembro, está escrito que nos tempos mais sombrios o autoritarismo e a burrice ficam em alta. O que mais te incomoda nesse sentido, atualmente?
“Pois é, Lu, como professora de filosofia, eu me preocupo com a mentalidade das pessoas, com a subjetividade, com a formação do pensamento e do imaginário sob as condições do capitalismo histórico e atual. A tecnologia que nos atravessa tem tudo a ver com isso. Creio que todos os brasileiros estejam preocupados com o que está acontecendo no Brasil, neste momento, seja qual for o nome deem a isso, ‘impeachment’ ou ‘golpe’, porque não se trata de uma questão puramente política, mas sim econômica (claro que tudo isso se confunde). Eu me preocupo com o neoliberalismo que nos atinge mais uma vez como uma bomba. Para que essa bomba, que é uma renovação do pior tipo de poder, aquele que domina sem trégua, por todas as formas de violência, é preciso que as pessoas estejam burras, no limite, idiotizadas, prontas para o abate por docilização, digamos assim. Quando escrevi ‘Como conversar com um fascista’, ou ‘Filosofia Prática’, que é meu livro de ética, foi movida por essa grande questão de nosso tempo que é a falta de reflexão. Conversar com quem não pensa é impossível. Mas a inteligência não é só uma categoria cognitiva, ela é uma questão moral também. Pensar e sentir podem parecer separados, mas na verdade são muito próximos. É evidente que o título de ‘Como Conversar com um fascista’ é irônico. A ironia precisa da inteligência, mas em uma época como a nossa, nem todo mundo consegue compreendê-la. E cada vez menos gente se relaciona a ela. Aliás, os meios de comunicação, as tecnologias de um modo geral, achatam esse aspecto da linguagem. Na falta de ironia, no mínimo, a gente cai no mau gosto. Os meios de comunicação estão cheios dele. O mau gosto é a cara de uma determinada moral e de uma determinada política. Não esqueçamos. O personagem do meu romance é, a propósito, um sujeito muito irônico, esse é o tom do seu humor. Nesse sentido, ele vai exigir um pouco da inteligência do leitor. Quem leu ‘Como conversar com um fascista’ está preparado”.
Qual é a sua antevisão do futuro próximo no nosso país?
“Queria ser suficientemente criativa para responder a essa pergunta. Mas nesse momento, talvez possamos nos ater a dois pontos de vista básicos. Primeiro, o pessimista – e não menos verdadeiro por ser pessimista – que aprendemos com o presente manipulado pelas elites dominantes: em nosso país, o exercício do poder ainda é o mais arcaico. O desrespeito à democracia é fato consumado com a desconsideração ao voto, com as armações mafiosas que reduzem o ato de legislar e governar à indignidade e à miséria espiritual. Experimentamos todo tipo de retrocesso nesses últimos tempos e continuaremos retrocedendo. O povo é o que não conta para quem passa a governar nesse momento, num retorno ao mal do qual um governo é capaz. Mas de um outro ponto de vista, o otimista – e não menos verdadeiro por isso – podemos dizer que haverá um crescimento da consciência, ainda que o movimento das instituições (igreja, televisão, etc.) para manipulá-la vá continuar. Como a arte é o que produz liberdade e autonomia em tempos sombrios, é possível que agora entremos em um momento superexpressivo nesse campo. O cinema, a literatura, as artes visuais, a dança, o teatro, a performance serão armas na mão de quem pensa”.
Você faz milagres com o tempo, ensina aí…
“Lu, querida, eu não faço outra coisa da vida e acho a vida tantas vezes tão chatinha que prefiro escrever. Estou brincando, mas falando sério, ao mesmo tempo. No meu caso, escrever tornou-se também um dever social, eu acho, como professora de filosofia que sou. A literatura, contudo, ainda que faça parte de um projeto filosófico, é a parte que eu mesma me dou de presente. Escrever literatura, por mais ético e político que possa ser, é um hedonismo puro. Um estranho prazer que dá muito trabalho. Recomendo a todo mundo”.