Quando me formei na faculdade de Jornalismo, muito jovem (em 1994), minha monografia virou um livro de depoimentos, com pessoas públicas falando sobre sexo. Por ter sido sucesso, três anos depois (1997), resolvi lançar outro, o “Tudo que eu já fiz por dinheiro” (Editora Objetiva), em que 94 pessoas falavam sobre o assunto, entre elas, João Ubaldo Ribeiro, que morreu nesta sexta-feira (18/07), de embolia pulmonar, deixando a cultura brasileira baqueada e triste. Marcamos num bar do Leblon, ao meio-dia, para eu gravar sua opinião. Cheguei nervosa, e ele já estava lá. Primeira pergunta pra mim: “Você toma um uísque ou uma vodca? Vendo a minha cara de surpresa, emendou: “Ou um chope?”. Um chope, claro.
Não sei direito por que, mas fiquei fascinada com aquele escritor que, de repente, virou “apenas” uma pessoa a quem eu conhecia, mas não conhecia. O encontro, que duraria, no máximo, uma hora, foi até o fim da tarde, já com ambos mais pra lá do que pra cá. Ali eu lhe contei toda a minha vida, infância em fazenda, a paixão da minha mãe pelo álcool (como a dele), etc. e tal. A certa altura, Ubaldo disse-me: “A vida da sua família dá um grande livro” – nunca esqueci essa frase.
Sobre o depoimento, Ubaldo comenta sua dificuldade em ganhar dinheiro, e a prova disso era que, com livros em inúmeros países, não tinha nem um apartamento – morava de aluguel, num imóvel do Caetano. Logo depois, passou a ter, já que a história chegou ao João Roberto Marinho (vice-presidente das Organizações Globo), que resolveu o assunto. Segue o depoimento, que, fora uns poucos detalhes, estaria atual:
“Por que cargas d’água você me escolheu? Logo eu, que tenho um mau relacionamento com dinheiro! Já passo dos 50 anos, sou conhecido no país inteiro, escrevo para vários grandes jornais do Brasil, tenho livros publicados em 16 países, e sou um pobretão. Não que eu passe fome ou não possa ter um carro, mas estou longe de ter o dinheiro que uma pessoa numa situação semelhante à minha teria.
Literatura quase não dá dinheiro. Me lembrei de uma vez em que perguntaram ao Carlos Eduardo Novaes se livro dá dinheiro. E ele disse: “Dá, dá, contanto que você não seja o escritor.”
Tenho recordações comoventes de escritores viajando para feiras ou convenções internacionais. Íamos de classe econômica e os editores todos, de primeira. De vez em quando, um deles vinha cá atrás e dizia, com aquela cara de sofrimento: “Como eu adoraria estar aqui com vocês, mas não posso, porque, se viajar aí, vão dizer que a editora está quebrando. Preciso manter o status.”
Tenho uma teoria – irresponsável – de que os mistérios do dinheiro e do sexo são semelhantes: ambos têm a ver com poder, por exemplo. As mulheres normalmente se manifestam contra, porque, apesar de gostarem do membro viril erecto – com perdão da má palavra -, elas querem ser autoras da mágica. É uma forma de exercer o poder.
Devo ter alguma trava na minha estrutura de personalidade com relação a isso, porque, durante muito tempo, tive vergonha de ser pago. Se não fosse meu agente – Thomas Colchie -, estaria com uma mão na frente e outra atrás. Mesmo assim, aposto com você que aquilo que o Tiririca fez – “Florentina, Florentina, Florentina, meu amor…” – já lhe rendeu mais grana do que toda a minha obra completa no mundo inteiro.
Se tivesse muito dinheiro, muito mesmo, muitíssimo, ia pagar aos maiores cientistas do mundo para pesquisar uma forma de o álcool não fazer mal algum ao organismo. Isso é um sonho para mim.
Gostaria de não me preocupar nunca mais com dinheiro. Não tenho um apartamento próprio, por exemplo. Alugo um do Caetano Veloso.
Nós somos comandados por uma sociedade secreta, que é a “confederação nacional dos despachantes”. Sem eles, a pessoa está perdida. Quem resolve enfrentar o Detran, o Félix Pacheco ou mesmo a Polícia Federal para tirar um passaporte, pode ir encomendando a internação – trata-se de um louco. O país gira em torno dessa cultura da dificuldade, onde se paga para tudo.
Tinha um garçom, da minha inteira confiança, que me trouxe uma grande decepção. Fui roubado por ele durante anos e não sabia. Não sou do tipo de pessoa que confere contas, e fiquei muito sentido com isso. Falar de dinheiro me deixa envergonhado. Vai aí um exagero metafórico que ilustra bem isso: se fosse um prostituto e a pessoa me dissesse: “Pago mil dólares por um serviço completo”, eu, apesar disso, ia dizer: “Cem tá bom, não se preocupa não.”