É Laerte, mas é ela. De Laerte Coutinho nunca se poderá dizer que não tentou, no mínimo, fazer as coisas ditas normais de maneira diferente, e de um modo muito seu, em contínuo estado de curiosidade. Estudou desenho na Fundação Armando Álvares Penteado, jornalismo e música na USP, mas não concluiu nenhum dos cursos. Sua carreira de cartunista começou desenhando o personagem “Leão” para a revista Sibila, em 1970, mas, quatro anos depois, já estava produzindo material de campanha para o MDB e, em 1975, criava cartões de solidariedade para chamar a atenção para a causa dos presos políticos. Seu envolvimento político o levou a fundar uma agência especializada em material de comunicação para os sindicatos, a Oboré.
Mas, paralelamente, seus personagens não paravam de surgir, e todos bastante inusitados: são de Laerte os “Piratas do Tietê”, piratas que saqueiam a cidade de São Paulo enquanto navegam o rio poluído, o “Overman”, super-herói com moral retrógrada, “Hugo Baracchini”, o homem comum em conflito com problemas contemporâneos e em desorientação extrema, e até “Deus”, que, com o mundo já criado e na falta do que fazer, joga cartas com Buda. Também escreveu para crianças: é sua a personagem negra Suriá, e para o programa TV Colosso, da Globo. Atualmente faz charges para o jornal Folha de São Paulo.
Para a TV escreveu ainda scripts para os humorísticos TV Pirata e as primeiras temporadas de Sai de Baixo. Contudo, seu melhor personagem talvez seja ele próprio, em constante transformação.
Em 2005, a morte do filho num acidente de carro mudou seu jeito de fazer humor. Saíram de cena as piadas clichê e o personagem Hugo passou a se travestir e viver nas tirinhas situações insólitas, beirando o poético. Assim como o próprio autor, que confunde as pessoas ao embaralhar a imagem dos papéis masculinos e femininos. Laerte disse certo dia à revista Trip que a melhor definição pra ele é a de uma pessoa que se traveste.
O que ele procura talvez seja sentir na própria pele coisas raras de se sentir no mundo de hoje: novas possibilidades, encantamento e excitação. “Tenho me ocupado de várias províncias internas!”, diz ela. Um trabalho sem perder de vista a sensibilidade, a criatividade e a inteligência só pode mesmo ter muitas províncias internas – cada um sabe das suas, né, Laerte? A foto é de Rafael Roncato.
UMA LOUCURA: “Loucurinhas, coisas doidivanas, faço algumas. Acho que seriam mais bem apontadas por outras pessoas do que por mim mesma. Mas loucura também pode ser no sentido de irresponsabilidade total, que coloca a vida em risco – a própria e a de outros. Uma loucura nada louca, e sim idiota, babaca, criminosa. Já cometi, não gosto de falar disso.”
UMA ROUBADA: “Roubada foi ter ficado dez anos trabalhando na Gazeta Mercantil.”
UMA IDEIA FIXA: “Acho que não tenho uma ideia fixa – ou talvez tenha e não esteja vendo.”
UM PORRE: “Porre, houve um, que envolveu uns finlandeses que faziam cinema. Não lembro direito, foi um porre clássico.”
UMA FRUSTRAÇÃO: “A gente se frustra quando determinada expectativa não se realiza. Penso nas minhas gatas, que contavam com a possibilidade de ter várias ninhadas de filhotes, coisa que impedi fazendo-as castrar. Gerei frustração, mesmo com todos os argumentos com que defendo esse procedimento.”
UM APAGÃO: “Se eu enunciasse alguma coisa, deixaria de ser apagão, não? Não lembro de nenhum…”
UMA SÍNDROME: “Percebo uma situação na qual, por motivos obscuros, me coloco mais ou menos inconscientemente numa sinuca existencial – mas, sobretudo, financeira. Já ocorreu várias vezes na vida. A falta de dinheiro atuando como pressão tanto real quanto simbólica.”
UM MEDO: “Tenho vários medos, difusos. Talvez sejam o mesmo medo. Medo de não corresponder às expectativas, de decepcionar, de perder afetos, medo de ficar sem meios de viver. Medo de contrair uma doença terrível. Ou de receber uma notícia terrível. Tenho medo de viver, mais do que de morrer.”
UM DEFEITO: “Tenho dificuldade com situações de responsabilidade, com tendência a me desviar de enfrentamentos e fugir de dar respostas que exijam franqueza.”
UM DESPRAZER: “Desprazer é barulhada, sons de alto-falantes, batidas tonitroantes, microfones amplificados.”
UM INSUCESSO: “Como editor da revista Circo, no fim dos anos 80.”
UM IMPULSO: “Acho que sou meio cagona – lembro mais de bloquear impulsos do que de dar curso a eles. Acho que castro várias das minhas gatas internas, também.”
UMA PARANOIA: “Tenho um sentimento de culpa mais ou menos genérico, que funciona com carga própria e influencia muitas das minhas ações e atitudes.”