A vida? Sempre foi regrada, sem excessos. Muito trabalho desde criança, dos tempos de ator-mirim na Globo. Meu pai era ator e diretor de teatro e minha mãe, bailarina. Aprendi bem cedo que a vida na corda bamba tem suas dificuldades e que, por isso, é preciso acumular reservas, sempre. Virei músico profissional por volta dos 20 anos; não adiantou ter cursado Jornalismo, muito menos ter feito mestrado e doutorado em Comunicação. A música se mostrou sempre ciumenta comigo, me roubou de tudo, me abduziu. Ainda ator, fiz a novela “Partido-Alto”, de Aguinaldo Silva e Glória Perez. O personagem era o filho do bicheiro; eu tocava bandolim em cena. Daí, mergulhei de vez nas rodas do samba e do choro – um mergulho no Brasil. Voltei para o violão, ainda o de seis cordas e, com ele, comecei a defender meus primeiros cachês. Mas já namorava o sete-cordas, com aqueles graves poderosos, as frases cheias de eloquência.
Foi assim que, em 1995, comprei meu primeiro violão de 7; quem me vendeu foi o Paulão 7 Cordas, mestre Yoda do samba. Sempre generoso, disse que eu podia pagar a perder de vista. Um instrumento lindo: corpo de cedro tingido, bem cheiroso, escala de ébano, tampo de pinho claro. Som brilhante e bem projetado, pegada macia. Equipado com um dos melhores captadores de som que há – um sonho! Comecei a tocar com ele no Encontros Cariocas, antigo bar da rua da Carioca, na roda de samba que Noca da Portela comandava às segundas. Por ali, passaram convidados como: Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Monarco, e toda a turma da Velha Guarda da Portela, Jovelina Pérola Negra, Roberto Ribeiro, Sombrinha, Agepê, Wilson Moreira, Nelson Sargento e tantos outros.
Militei na noite por mais de duas décadas e então fui passando a trabalhar em outras frentes: blocos de carnaval, escolas de samba, shows de teatro, gravações de discos, arranjos de música, criação de trilhas de teatro e cinema. Tudo isso, sempre abraçado ao mesmo instrumento, companheiro fiel. Depois, ainda virei diretor de musicais, como o “Sassaricando”, que, durante uma década, rodou pelo País, celebrando a marchinha carioca. Virei também diretor de shows do Projeto Pixinguinha, criei e dirigi 15 séries de shows para o CCBB, minha segunda casa. Produzi discos, alguns premiados. E, invariavelmente, grudado ao mesmo violão.
Sempre trabalhei muito. Não me considero uma formiga, verdadeiramente espartana e disciplinada, mas sou uma cigarra workaholic. Daí, raras vezes precisei me preocupar com as finanças no fim do mês. Nunca atrasei minhas contas, nem em meio a sucessivas crises financeiras no País. Até que o cenário mudou: no último ano do governo Dilma, os músicos e demais trabalhadores do setor cultural começaram a perceber que o cenário estava encolhendo. Veio Temer, que, no primeiro dia de mandato, extinguiu o Ministério da Cultura. A reação foi forte, e o presidente voltou atrás, mas as verbas do MinC já não eram as mesmas. Com Bolsonaro, a guerra institucional à Cultura foi declarada. As estatais ceifaram violentamente verbas e editais. Músicos começaram a vender instrumentos e equipamentos. Instrumentistas famosos e requisitados começaram a se oferecer para dar aulas. Encontrei dois colegas dirigindo Uber. Os boletos já não eram constantemente honrados.
Por fim, a pandemia. O pesadelo final. Escassez inédita de trabalho e de renda. Para muitos (e para mim), a ameaça de insolvência. De repente, o estalo: vender meu companheiro de trabalho, que há um quarto de século me acompanhava. Entre o desapego e a dor da separação, venceu a sobrevivência. No dia de meu aniversário, o anúncio nas redes sociais, e o apelo por trabalho.
Sinceramente, não achei que meu pedido de socorro fosse ter tamanha repercussão. Recebi, ainda pela manhã, cinco telefonemas de amigos se oferecendo para comprar o instrumento, desde que ele ficasse comigo. Muitos companheiros começaram a falar, ao mesmo tempo, em vaquinha virtual. Quem acabou tomando a iniciativa foi Maíra, mãe do meu filho, que encabeçou o movimento. Ela sabia que minhas dívidas alcançavam muitas vezes o valor pedido pelo violão, e estabeleceu uma meta audaciosa. Pois essa meta foi batida em 48 horas, e até agora há gente que continua a contribuir. Propostas de trabalho têm aparecido, com antigos e novos parceiros. Ainda estou atordoado por toda essa corrente de afeto e solidariedade. Se antes tinha dúvidas, agora sei que meus acertos foram ainda maiores que os erros.Obrigado!
Luís Felipe de Lima é músico, produtor, diretor, pesquisador e escritor, há 14 anos, do Estandarte de Ouro. Acompanhou os maiores sambistas com o violão posto à venda. Grande nome da arte, é chamado por muitos de “patrimônio imaterial do Rio”.