Neste fim de semana, enquanto retirava o carro da garagem do prédio, encontrei o meu vizinho do andar de cima, cuja tristeza extrema pela perda do pai para a covid foi a senha de que necessitava há muito para compreender que, em pouco tempo, voltaremos com tudo ao velho normal. A ideia de que nos transformaríamos com a dor provocada pela tragédia da pandemia é uma falácia. Não haverá novo normal porque a urgência em retomar a felicidade suprema pré-covid se sobrepõe à necessidade de compartilharmos o luto com as mais de 600 mil famílias que perderam os seus entes queridos. “A única coisa que desejo agora é viver a 10 km por hora. Para que correr? Por que correr? Eu quero viver o tempo da delicadeza”, disse-me o vizinho com os olhos cheios d’água. Ele está despedaçado. O pai era a sua maior paixão. Sim, mas meu vizinho está na contramão da demanda coletiva.
Entrei no carro aos prantos e fui fazer um lanche num shopping próximo de casa. A praça de alimentação estava lotada e havia música mecânica com um DJ tocando ao vivo. “Ops!, vim para o lugar errado”, pensei. Fui em direção, assim, a outros dois restaurantes no mesmo shopping. Também havia música. Em um deles, o som estava um pouco mais baixo; foi ali que me acomodei. Mas dez minutos após ter feito o pedido, uma gritaria ensurdecedora tomou conta do ambiente — o Flamengo marcara um gol. Havia transmissão de jogo nas TVs distribuídas pelo espaço. Não quis cancelar a comanda. O músico, solitariamente, tocava “Imagine”, de John Lennon. As pessoas lançavam mão de gritos de guerra e batiam nas mesas e também com os talheres nos pratos.
Era uma disputa insana aquela que eu presenciava: os versos em feitio de oração de Lennon contra a grosseria de uma gente que parecia estar no quintal de casa. Fechei os olhos e respirei fundo. A comida chegou. Veio outro gol: nova gritaria, crianças correndo pelo salão junto com os pais, festejando com “porras”, “caralhos” e “Lê lêlê lêlê lêlê bota pra fuderr!” Muitos tiravam fotos para as redes sociais, outros buscavam cumplicidade na vozearia com as pessoas das mesas ao lado. A esta altura, sem máscaras por estarem em um restaurante, trocavam perdigotos sem cerimônia. Os protocolos sanitários já não fazem mais parte do cotidiano daquelas pessoas. A pandemia é assunto do passado para eles que, visivelmente, viraram as tristes páginas dessa história.
O lema do “é melhor ser alegre que ser triste” ganhou reinterpretação e tomou conta das ruas. Tiremos as máscaras, aglomeremos, celebremos a vida. Comemos ossos, mas ao menos estamos vacinados. A gasolina está R$ 7, mas, ao menos, estamos vacinados. Sepultamos mais de 600 mil, mas, ao menos, estamos vivos. Quanta felicidade em podermos estourar o nosso prosecco no próximo réveillon, em ser testemunha ocular do maior carnaval de todos os tempos, em voltar a viver como um simples cidadão de outrora.
Não resgatemos memórias dos que foram vitimados pela maior crise sanitária dos últimos cem anos. A gente faz um memorial, como aquele Monumento aos Pracinhas no Aterro do Flamengo e anualmente pedimos o arcebispo do Rio que celebre uma missa aos pés do Redentor. A solução está aí. Missas celebrativas de tragédias são sempre ótimas pautas para repercutir na mídia. Como diria Calderón de la Barca, a vida é sonho, e, como sonhar não custa nada, bora viver. Desenlutem, enxuguem as lágrimas. O que importa é voltarmos ao velho normal, porque quem morre mesmo são os que partem.
Vagner Fernandes é jornalista, pesquisador e escritor. Lançou a biografia “Clara Nunes — Guerreira da Utopia”, pela Editora Ediouro, em 2007, reeditada em 2019, e, há mais de 20 anos, cobre reportagens na área de Cultura.