Vinte e quatro horas por dia, pensamos na Covid. Sendo médico, não tenho privacidade nem nos fins de semana; vivo sobrecarregado, nem jornais eu leio mais. Estou no momento em que começamos a questionar nossos valores. Uma situação dessas tem sempre os dois lados, claro; agora janto com a minha família todos os dias, e não me lembro de isso acontecer há muito tempo. Tudo bem que não é aquele jantar tão prazeroso — é como se, entre nós, estivesse o coronavírus, quase que sentado à mesa.
Falamos das novidades em volta da doença: quem está doente, quem está contaminado, quando estaremos imunes e, infelizmente, quem já morreu. Fica um clima pesado. A primeira coisa que me vem à cabeça é que era inimaginável pra qualquer um jamais supor o que o mundo está passando. Antes, estavam todos preocupados com briga comercial China x EUA; agora, até os imigrantes parece que deixaram de existir. E tantas outras preocupações, o Brasil tentando sair da recessão, melhora fiscal, tudo foi deixado de lado.
Vou a São Paulo de 15 em 15 dias, de carro, porque preciso estar com as nossas lideranças médicas, mas a gente não abraça ninguém, sinto muita falta de abraço. Existe o digital, mas o convívio é diferente: sem olho no olho, carinho, sorriso. No meu aniversário, em abril, os afetos foram à distância. Fui também a um enterro, e isso se repetiu, sem poder abraçar as pessoas queridas. Minha mãe, de 82 anos, a quem eu vejo a cada dez dias, não entende. Mesmo com tudo que vem acontecendo, me considero agraciado, estou trabalhando, tenho saúde, moro bem, e sabemos de tanta gente desprovida disso. Mas, agora, vendo o Hospital do Fundão, que consegui reativar, proporcionando mais 50 leitos de UTI, isso me traz uma certa felicidade, é muito bacana. A epidemia vai passar, mas o medo do desconhecido vai permanecer, até ficar pronta a vacina. Aí, sim, vai ser um alento.
Até agora, posso dizer que sabemos muito pouco, pelo total desconhecimento, nem mesmo como vai ser o relaxamento do isolamento social. Essa volta não vai ser de uma hora pra outra. Não sabemos se a imunidade é duradoura, se vai ter uma segunda onda, e tudo isso traz ansiedade. Vai ter muita gente triste pelo luto, um possível aumento da depressão, afetando todas as classes, sem falar na recessão que o mundo vai passar.
Não posso deixar de falar da esperança trazida por novos tratamentos, como drogas e vacinas que estão testando com resultados promissores. E, ainda, do meu agradecimento muito grande aos colegas da Saúde; realmente, muito grande, sabem do risco que correm, mas não deixam de trabalhar. Estou certo de que as pessoas vão sair deste momento mais solidárias e menos materialistas.
Acho que, aqui, no Rio, ainda vamos ter dias duros. Tenho percebido uma certa inconsequência com relação ao isolamento — é uma pena. Passado isso, posso apostar com você que nós, cariocas, tão alegres, vamos voltar a ser como sempre fomos. Vai voltar aquele astral que a gente não vê em nenhum lugar do mundo.
Romeu Domingues é médico radiologista, formado pela UFRJ, pós-graduado em Ressonância Magnética pela Universidade de Harvard, presidente do Conselho de Administração da Dasa.