“O maior escândalo dos escândalos é quando nos habituamos a ele.” (Simone de Beauvoir)
Escrevo pouco antes deste 7 de setembro, o único alimentado por estranhos desígnios que determinaram sua fixação principal em algumas capitais, como Rio, São Paulo e Brasília. Seriam elas admitidas como palcos preferenciais para o absoluto ineditismo de o Presidente da República projetar comícios a seu favor e reunir simpatizantes e grupos de apoiadores, como dizem os caminhoneiros, cujo líder é o suspeitíssimo (até pelo nome novelesco) Zé Trovão.
Como para emoldurar tamanho disparate, o País ainda comenta em qualquer boteco onde se reúnam mais de duas pessoas o incidente que paralisou o jogo Brasil X Argentina, já valendo para a Copa do Catar.
Ousaria tratar ambos os eventos acima como escândalos de um país que vive uma realidade trepidante, mais que isso, preocupante, muito preocupante. Surreal.
Devo observar que o incidente no estádio do Corinthians repercutiu pelo mundo inteiro, com a imprensa internacional, ao menos os setores mais qualificados, em defesa de que as definições sanitárias da pandemia devem ser mesmo rígidas em qualquer país, em especial onde morreram quase 600 mil pessoas, como no Brasil. E obrigatoriamente acatadas por todos, turistas ou não.
O que houve? A Anvisa foi minuciosa ao apurar a transgressão dos quatro jogadores que chegaram ao Brasil procedentes do Reino Unido, os quais, além de mentirem e se recusarem a assinar qualquer intimação de quarentena obrigatória, infringiram as leis brasileiras ao pôr em risco a vida de inocentes e a saúde pública em geral.
Ao ouvir comentários em emissoras portenhas naquela noite, confesso que me indignaram gracinhas anti-Brasil como …”Bolsonaro abandonou seu país à própria sorte e agora ousa descontar seus erros em nossos jogadores, como se fôssemos também macaquitos”. Nada mais preconceituoso e insultuoso para os nossos brios – o que alimenta perigosamente aquilo que julgava ultrapassado, o quase ridículo “Argentina e Brasil não se bicam”!
De fato, cabe acrescentar que o Presidente, mesmo reconhecido como amante do esporte bretão, teve atitude de estadista ao agir com discrição e não metendo a colher em assunto prestes a se converter em incidente diplomático. Ainda bem.
O mesmo não posso me referir ao ineditismo de sua participação neste dia que amanhece daqui a pouco. Onde estão a assessoria palaciana ou mesmo seus consultores particulares para não terem dissuadido o capitão a misturar alhos com bugalhos?
Creio que Bolsonaro foi longe demais ao incentivar sua tropa de choque a intervir logo em data considerada quase um símbolo nacional para tantas gerações. Um patriota (palavra antiguinha, mas de resgate necessário) que absorve estímulos de amor a seu país por décadas a fio não gostará de assistir a essa intromissão indébita.
A inquietação cresce quando o Presidente em pessoa não só faz publicamente o chamamento de seus votantes em explícito apoio eleitoral, mas também ergue seu alegórico tridente em fogo para espetar nas instituições, o STF e o Congresso Nacional com preferência. Por muito menos, João Goulart foi deposto depois do Comício da Central e do apoio dos marinheiros da Marinha em 1964.
O que afrontará mais a cúpula militar, guardiã legítima da disciplina e respeito aos símbolos nacionais, do que delegações da soldadesca das PMs e dos bombeiros estaduais? Ou ainda, caminhoneiros e invasores de terras indígenas? Especialmente quando agregadas a fanáticos de ideologias exóticas? Imaginemos a mudança radical e intolerável para nossos hábitos cívicos de décadas: as Forças Armadas substituídas por um bando de estranhos a invadir ou gritar palavras de ordem contra autoridades e prédios do STF e do Congresso Nacional. Observo que Bolsonaro aliciou tropas militares alternativas dos estados, sendo o primeiro Presidente do Brasil a proceder desse modo, para fins exclusivamente eleitorais. E por que as Forças Armadas verdadeiras se calam? Seria a hora exata para uma palavra esclarecedora do nosso Vice-presidente Mourão, um substituto eventual certamente confiável.
De fato, as últimas declarações do Capitão são constrangedoras — “essas duas pessoas (!) do STF não podem dar outro rumo ao Brasil. E o recado de vocês, povo brasileiro, na próxima terça-feira será um ultimato para essas duas pessoas (os ministros Barroso e Moraes, claríssimo) se curvarem (!) à Constituição (!)”.
Posteriormente, o Presidente asseverou que — “após os atos (!) de 7 de setembro, eles verão que estão no caminho errado (!). E eles saberão se redimir (!)”.
Todas essas exclamações inseridas em certas palavras correspondem a uma talvez ingênua inquietação minha – como a tentar decifrar a que ameaças e a que atos o Presidente se refere. Golpe, anúncio de ditadura, derrubada do estado de direito? Todos os jornais temem que isso aconteça. Para mim, o que espero, se limitará a alaridos de gritos e refrãos. Jamais atos concretos de insurreição.
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical. Acaba de lançar o livro “Pandemia e Pandemônio” (Editora Batel).