Recentemente, uma pesquisa consultou 20 casais da classe média carioca: “O que é casamento?” A resposta de 95% das entrevistadas foi: uma relação de amor; a de 100% dos homens, a constituição de uma família. São visões diferentes e frustrações idem. Mulheres encaram a separação como uma consequência do fim do amor; já para grande parte dos homens, o fato de a relação não ser um mar de rosas não justifica um rompimento — bem ou mal, eles têm uma família. A questão que ela suscita e mola mestra da imensa maioria das separações é velha como a humanidade, no entanto, atualíssima: a constatação de que o sexo oposto é exatamente isto — oposto.
Hoje, a baixa dos índices de natalidade e fecundidade, o aumento de casais e de nascimentos fora do casamento, o aumento do número de divórcios apontam modificações na sociedade. A maior delas, contudo, é a simbólica. Está havendo uma brutal individualização da família. Nela, assistimos à passagem do coletivo ao singular; do grupo, ao indivíduo. E ela gera duas correntes: a dos que dizem que a família está recuando como instituição, resultado de uma cultura fundada na defesa dos interesses pessoais e do egoísmo ambiente, e outra, que defende a capacidade do individualismo em valorizar as escolhas eletivas, escolhas capazes de fazer do outro uma fonte de realização de si.
Essa nova ordem sentimental repousa menos sobre valores coletivos e mais na aspiração de construir uma identidade. A “fidelidade incondicional” de outrora foi trocada pela “fidelidade enquanto se ama”; de juramento solene, ela passou a uma consciência do provisório.
Transformações econômicas, demográficas, culturais e sociais agiram para modificar tais relações. Álbuns e os retratos ganharam novos atores: madrastas, padrastos, meios-irmãos e produções independentes. Segundo cálculos do IBGE, nesta década, 47% dos domicílios têm pais ausentes; muitos deles se caracterizam por ligações consensuais temporárias. Os avós têm novo papel: criar e educar os netos, repartindo com pais biológicos responsabilidades, inclusive, financeiras. Uma mudança importante se dá para as minorias: os homossexuais começam a sair do armário e a ocupar a cena pública. “Pai, mãe: sou gay” — a confissão é melhor aceita. É o começo do fim de uma sociedade que produzia sofrimento graças ao jogo da repressão, do interdito, da miséria sexual.
Na intimidade, a sexualidade liberou-se, por completo, das exigências de reprodução, graças à difusão dos meios modernos de contracepção. Tornou-se mais livre, fluida e aberta à emergência de estilos de vida os mais variados. Ela se tornou algo que se cultiva, que tem a ver com a identidade de cada um, e não mais uma norma coletiva predeterminada. O que era considerado “perversão”, pretensamente “anormal” aos olhos do público, foi descrito, analisado e virou “ciência” alimentada por textos e debates: a sexologia. Findou o limite ou as lições sobre como usar o corpo. O prazer, ou sua promessa, revelou-se infinitamente eficaz para a comercialização de bens, no seio da sociedade de massas. O imaginário sexual tornou-se uma gigantesca estratégia de vendas. O sexo, antes reprimido e disciplinado, depois instrumento de emancipação e igualdade nos anos 70 e 80, passou a um poderoso aliado do consumo e do hedonismo. Sua banalização seria uma maneira de distrair a sociedade de seus verdadeiros problemas?
Antes encerrada em espaços estritos e secretos, onde se exercia o controle disciplinar e repressivo sobre a sociedade, a sexualidade tornou-se pública; hoje, o sexo se ostenta. Em toda parte, a maior dose de superexposição é possível por meio de redes e da mídia, e o exibicionismo é uma das motivações para seu uso — divulga-se o ego, sem meios-termos. Vivemos numa sociedade narcisista e confessional. Sociólogos explicam que a relação sexual e amorosa se democratizou. Cada qual busca, no encontro com o outro — por vezes, encontros em série —, a realização de um projeto de vida e de uma invenção de si. Nada disso é fácil de viver, no entanto, asseguram os especialistas, é um mundo de liberdade e invenção.
Se a ideia de interioridade dava consistência à vida dos indivíduos no passado, hoje, vivemos, apenas, o instantâneo, o espetáculo. Se a privacidade se opõe ao público, a intimidade é uma palavra carregada de afeto e de vida que se opõe ao universo publicitário, dizem os filósofos. Nos últimos séculos, tanto a privacidade quanto a intimidade sofreram transformações. No início, as pessoas não estavam jamais sós; membros de comunidades, elas viviam em espaços sem divisões. Buscar o isolamento era luxo dos que podiam; estar longe do olhar dos outros definia o privado. Homens e mulheres dobraram-se às boas maneiras: vestiram-se, deixaram de urinar publicamente e de comer com as mãos. Por caminhos diversos, a educação do corpo adquiriu fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”. Se antes éramos malcheirosos e sujos, hoje somos perfumados. Ontem, marcados por cicatrizes; atualmente, cauterizados. No passado, castos e cobertos; agora, desnudos e exibidos.
Hoje, espaços privados estão ligados à noção de conforto e convivialidade. “Estar bem”, significa ter seu “canto”, reconhecer-se em objetos familiares, sentir seu próprio cheiro. Nesses espaços, cuida-se de si. Avalia-se o trabalho permanente para definir as fronteiras entre o íntimo e o social. E ali, no coração da vida privada, a intimidade: a fronteira fluida entre o indivíduo e o mundo, o espaço preservado contra as agressões. Ali, o corpo, o sexo, o amor, a imaginação, a memória e tudo o mais o que seja cumplicidade consigo mesmo. Na intimidade, podemos levantar todos os véus e nos perguntar quem somos.
E quem somos? Indivíduos de muitas caras: em público, civilizados; no privado, sacanas; na rua, liberados; em casa, machistas. Ora permissivos, ora autoritários. Severos com os transgressores que não conhecemos, porém indulgentes com os nossos, os da família. Ferozes com os erros dos outros; condescendentes, com os próprios. Em grupo, politicamente corretos, porém, racistas, em segredo. Entusiastas dos “direitos humanos” lá fora, mas a favor da pena de morte, cá dentro. Amigos de gays, mas homofóbicos. Finos para “uso externo” e grossos, para o interno. Exigentes da cobrança de direitos, mas esquivos no cumprimento de deveres. Somos velhos e moços, nacionalistas e internacionalistas, cosmopolitas e provincianos, divididos entre a integração ou a preservação de nossas múltiplas identidades. Na intimidade, miramos nossas contradições. Resta saber se gostamos do que vemos.
Mary Del Priore, ex-professora de História da USP e da PUC-Rio, e pós-doutorada na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, já publicou mais de 50 livros; É vencedora de vários prêmios literários nacionais e internacionais, como Jabuti (três vezes), APCA e Ars Latina, dentre outros. Está lançando, pela Editora Planeta, nova edição de “Histórias íntimas”.