O rei Charles III e sua mulher, a rainha Camilla, serão coroados e ungidos, neste sábado (06/05), na qualidade de soberanos do Reino Unido da Grã-Bretanha, Irlanda do Norte e mais meia dúzia de remanescentes daquele antigo império colonial. Dos dez monarcas da Europa de nossos dias, só o britânico pode se dar o luxo de submeter-se e protagonizar uma cerimônia religiosa — e é isso que ela é — que evoca o direito sagrado e divino dos reis com suas raízes na Idade Média. Isso porque a Inglaterra é berço do Parlamentarismo, do Liberalismo. E quem vai negar as sólidas instituições supostamente democráticas de Sua Majestade? Por isso, pode manter tradições e modificá-las.
Para a maioria, trata-se de um anacronismo, e certamente o é; muitos nem sequer sabem do que se trata. Já ouvi, com certa dificuldade, confesso, que o rei vai “tomar posse”, tão estranha uma coroação é para nossos dias.
Esta será uma “releitura”, já que também é um espetáculo, de uma cerimônia em que os reis da Idade Média, e no decorrer da história antes das democracias modernas, legitimavam seu poder, que emanava de Deus, e não da aclamação dos povos. A matriz copiada pelos ingleses era a coroação dos reis da França, muito mais antiga. Nesse ato litúrgico, de ordem privada em que estavam o rei, o clero e a nobreza, o soberano recebia os santos óleos e a coroa, tornava-se uma espécie de entidade sagrada, recebia um sacramento que só os reis recebiam ou, pelo visto, recebem. A nobreza prestava juramento de fidelidade.
No entanto, as tradições são criadas para serem quebradas. Ninguém faz isso melhor do que os reis britânicos; por isso, sobreviveram e podem produzir esse espetáculo visto por milhões de pessoas. Uma rainha divorciada será ungida e coroada; o filho do rei não lhe é exatamente fiel; o irmão, príncipe de sangue real, está nas barras do tribunal, acusado de assédio; e talvez nenhum rei esteve tão nu quanto Charles III, que desejou ser o absorvente íntimo de sua amante, que será, afinal, coroada em Westminster. A nobreza foi dispensada do juramento de fidelidade porque a modernidade está mais preocupada com a fidelidade dos plebeus, convidados a esse juramento. O “Defensor da Fé” (anglicana, bem entendido), o rei, acolhe na abadia representantes de outras religiões: o premier muçulmano vai ler epístola da Bíblia; mulheres, pela primeira vez, integrarão a cerimônia. Tradições quebradas, a modernidade exige, mas são tradições criadas. Assim a monarquia britânica sobrevive.
Onde estão os Habsburgos, Hohenzollerns ou Romanovs? Perderam-se presos às suas tradições. Os britânicos driblam tradicionalistas, republicanos, clérigos e protocolos. O negócio da monarquia é rentável, o sucesso é garantido. Talvez alguns protestos incômodos do tipo “Camilla never, Diana forever” apareçam, mas não se abalarão: seguirão em frente. É preciso mudar para permanecer como está, já dizia Lampedusa em “O Leopardo”. A monarquia britânica quebra tradições porque é ela mesma quem as inventa. Outras coroações em Westminster, com certeza, virão.
Foto: Ben Stansall/POOL/AFP
Francisco Vieira é mestre e doutor em História (respectivamente, pela UFRJ e UFF), além de pesquisador e consultor, por exemplo, da novela de época “Novo Mundo” (2017), da TV Globo. Também é frequentemente convidado a falar, na GloboNews, sobre fatos históricos, acontecimentos de época e casamentos reais. Seu lema costuma ser a frase “não saber história é estar condenado a repetir erros”.