Reza a doutrina espírita que não devemos lucrar com os dons mediúnicos que o Criador nos deu. Sendo ateu, acho que estou liberado desses pudores.
Uma boa referência de dons bem explorados é a médium Adelaide Scritori, manager do Cacique Cobra Coral, entidade meteorológica e espiritual. Sem cobrar nada, ainda assim faturava com a Prefeitura, o governo do Estado e instituições privadas para impedir que chovesse em eventos — principalmente aqueles que passam ao vivo na tevê (reveiôn, final de vôlei de praia, Rock in Rio). Sua taxa de sucesso era de 100% — até porque quando chovia ela tinha sempre uma boa desculpa (o táxi não chegou a tempo até o local exato onde ela iria contatar o Cacique).
Mesmo sem o zap do Cacique (que, apesar do nome, é americano e foi Galileu Galilei em tempos menos céticos), também sei como fazer que não caia um pinto d’água. É só eu carregar um guarda-chuva.
É botar o guarda-chuva no braço e sair que as nuvens recuam, respeitosas. Suponho (não há provas) que até suguem de volta as gotas que ainda estavam despencando. Tudo pelo prazer de me ver circular por aí carregando inutilmente o trambolho.
Se, além de não chover, quiserem sol a pino, é só avisar que eu visto uma camisa de manga comprida, remanescente do guarda-roupa curitibano. Garanto um calor de Bangu à uma da tarde em qualquer dia do ano, valendo a partir do momento em que abotoar o punho. Aconteceu semana passada em Araras, acontecerá inexoravelmente enquanto o destino quiser que eu sue em bicas graças à escolha errada da indumentária.
Posso, também, controlar o trânsito. Você está no Centro, quer vir para a Barra e não sabe se pega a autoestrada ou se vem pela Niemeyer. Faça o pix, eu pego uma das opções (não importa qual) e você vai na outra. É tiro e queda: a que eu escolher vai estar engarrafada, com acidente envolvendo ônibus e moto, protesto de taxista, obra da Cedae, manutenção da CET-Rio e blitz da Lei Seca. A outra fluirá livremente.
Quer que o avião saia na hora? Me reserve uma passagem no mesmo voo e eu chego 15 segundos atrasado — bem a tempo de ver o bichão decolando, com pontualidade nipônica. Acha que não vai dar para chegar a tempo? Me reserve uma passagem etc, e eu chego ao aeroporto duas horas antes. O avião não sairá no horário nem a pau.
Ofereço também meus serviços em fila de supermercado (pegue a do lado), postos de gasolina (todos os outros frentistas são menos relapsos que o que vem me atender) e cinemas (fique longe de mim, porque à minha volta é que se sentam todos os que conversam alto, falam ao celular ou digitam no whatsapp — quando não fazem tudo isso ao mesmo tempo).
Ter esses dons e não os usar para o bem da Humanidade é até sacanagem, né não? Como a médium do Cobra Coral, não vou cobrar. Mas claro que se não houver uma doação espontânea, de acordo com uma tabela que divulgo em breve, nada feito.
Agora é só cancelar o registro no CAU (a Arquitetura já deu o que tinha que dar) e esperar pela clientela.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.