Sessenta dias em casa! Quem diria aonde nós, cidadão brasileiros, chegaríamos? Nada era previsto, e acredito que, se fosse, pensaríamos não ser capazes de passar por tudo isso. Foi, no dia 12 de março de 2020, que eu me dei conta do impacto que o Covid-19 teria no meu dia a dia. Eu estava em São Paulo, para a reunião do conselho da Gastromotiva. A reunião aconteceria no escritório do JP Morgan, mas, na última hora, ninguém apareceu presencialmente, e a conexão virtual não resultou em algo concreto. O vírus chegou, a bolsa caiu, e todos os conselheiros que estariam presentes tiveram que se ausentar para cuidar cada qual da sua vida e de seus negócios, que iriam sofrer mudanças, ainda inimagináveis, a partir daquela quinta-feira.
Quando saí de lá, comecei a caminhar pelas ruas de São Paulo, e um sentimento ruim logo me pegou. Comecei a imaginar como, com o Covid-19, as pessoas nas favelas e periferias brasileiras iriam conseguir manter a distância e o isolamento social, em casas pequenas com grandes famílias? Como iriam se proteger e tomar todos os cuidados de higiene necessários em locais sem água ou com saneamento básico precário?
Ao longo desses dois meses de pandemia, passei por várias nuances. No dia 13 de março, começamos a repensar os modelos de impacto da nossa organização. Nos perguntamos se nossos alunos continuariam empregados e como lidariam com o medo de perder seus empregos, suas fontes de renda. Como consolidaríamos e transformaríamos nossos 15 anos de experiência e conhecimento em ação?
É preciso dar atenção à fala do World Food Program (2020), de que a fome pode vir a matar mais do que o coronavírus. Tenho um compromisso pessoal e desafiador — alinhado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU – de impactar a vida de 10 milhões de pessoas até 2030. Até lá, são 10 anos; no último semestre, vinha planejando como iria atingir essa meta. Reformulando as ações de impacto da Gastromotiva, me enchi de esperança e otimismo por perceber que poderia alcançar o primeiro milhão de pessoas através das Cozinhas Solidárias, projeto de contingência que lançamos em resposta ao vírus. O principal objetivo é alimentar pessoas em situação de vulnerabilidade e gerar renda para famílias que foram afetadas por conta do coronavírus.
Sempre acreditei que a comida é uma ferramenta poderosa de transformação. Todo e qualquer projeto que, através do alimento, muda a vida das pessoas menos privilegiadas faz parte do movimento que chamamos de Gastronomia Social. Além disso, também acredito que todo negócio é capaz de gerar um impacto social. É exatamente o que estamos percebendo agora no mundo: diversos setores, inclusive o da gastronomia, estão se reinventando e direcionando recursos e maior atenção para ações sociais.
O vírus trouxe muita incerteza para nós: não sabemos o que vai acontecer daqui pra frente. A crise da saúde se dá por conta da contaminação pelo Covid-19, mas a população também está adoecendo mentalmente devido ao confinamento e ao número de pessoas desempregadas que cresce a cada dia e desestrutura muitas famílias. É o efeito dominó da pandemia. Como se não bastasse, no Brasil contamos com um líder completamente despreparado para controlar toda esta situação que estamos vivendo.
Continuamos vendo corrupção, em vez de termos mais compaixão, empatia e cuidado com o povo. Percebo que, ainda que com um governo contra a maioria, ao unir agentes-chave da nossa sociedade, de pessoas fortes e resilientes, podemos mitigar os efeitos negativos da pandemia. Torço diariamente para que nossa esperança não fique para trás, pois me envergonho de ser de um dos países mais despreparados para lidar com o vírus, visto o isolamento social sendo ignorado por muitos. Lembro que, se levado a sério, acontecendo de maneira adequada, serão mais de 15 mil vidas salvas nas próximas duas semanas. Isso significa uma vida salva a cada 78 segundos.
Em contrapartida, no meu ambiente de trabalho e rede de relacionamentos, tenho oportunidade de lidar com diversos empreendedores sociais, chefs e indivíduos com ideias incríveis e inspiradoras. Como exemplo, cito o lançamento do aplicativo criado pelo jornal “Voz das Comunidades”, editado pelo René Silva, junto ao Consulado Americano do Rio, que informa o parâmetro sobre o Covid-19 nas favelas e combate a desinformação sobre o vírus.
Nesses dois meses que pude ficar em casa, percebi que é necessário parar, pensar e ter coragem para se reinventar. É preciso avaliar a nossa missão no mundo, nossos valores, nossa contribuição na sociedade, refletir e agir pensando no próximo. Agir por aqueles que não estão vivenciando esta crise com as mesmas condições que você. Sinto-me privilegiado por ter casa, comida e um companheiro. Da minha varanda, olho uma rua cheia e me pergunto onde está a empatia dessas pessoas. Quando todos estarão unidos e pensando no bem coletivo?
David Hertz, de 45 anos, tem a receita do “novo mundo”, digamos assim. É um dos fundadores da Gastromotiva, organização de combate, principalmente, à fome. As ações lhe renderam reconhecimento da ONU, como sendo um dos melhores métodos para a inclusão social.