Há 16 anos, a carioca Clarice Niskier pisava no palco para sua primeira encenação de “Alma Imoral”, adaptação do livro homônimo do rabino Nilton Bonder. Desde então, foram 14 anos seguidos em cartaz — com uma pausa apenas durante a pandemia —, com mais de 550 mil espectadores em mais de 40 cidades. A dar um nome pra isso, seria “fenômeno”?
Talvez, um dos segredos não esteja na Cabala, que surge na peça — reflexão sobre o certo e o errado, obediência e desobediência, tradição e transgressão, hipocrisia e honestidade, além de aproximar temas como religião e biologia —, mas na intensa rotina de estudos da atriz, que nunca para de criar.
Atualmente em cartaz com “Alma”, no Teatro Eva Herz, em São Paulo, até 11 de dezembro, ela estreia curta temporada do espetáculo no dia 2 de novembro, no Laura Alvim, em Ipanema — a casa de cultura comemora 35 anos com uma série de eventos. Enquanto isso, a atriz, está com “A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong”, inspirada na obra poético-musical de Zeca Baleiro, às quartas e quintas, às 20h, com temporada até 27 de outubro, também na Laura Alvim. O momento pode ser bom pra esse programa: quando a Clarice entra em cena, a gente esquece de tudo.
Com supervisão de Amir Haddad, Clarice trabalhou por três anos no texto de “A Esperança”, que marca seus 40 anos de carreira, e foi encenada pela primeira vez online em 2020. No ano passado, também estreou “Coração de Campanha”, escrito durante a pandemia, uma mistura de autobiografia com sua reflexão sobre o aumento da violência doméstica no período de isolamento, ao lado de Isio Ghelman, com direção do parceiro da vida inteira, Haddad, e produção de José Maria Braga, seu ex-marido, com quem foi casada por 25 anos, também autor da trilha sonora.
Clarice estreou em 1981, no Teatro Tablado, com “Tambores da noite”, de Bertolt Brecht, e hoje tem mais de 40 espetáculos no currículo.
UMA LOUCURA: Em outubro de 2020, quando a pandemia deu uma pequena trégua, apresentei “A Alma Imoral” para 10% da plateia no então Teatro Petra Gold, no Leblon. Foi uma loucura. Tinha medo de tocar em tudo. Na bancada do camarim, nas cadeiras, não me aproximava de ninguém, tinha medo de respirar, mas eu tinha que estar ali… O teatro parecia um hospital, de tão higienizado. Lembro que pensei: é a primeira vez que entro num teatro sem ácaros, fungos e sem fantasmas. Onde estão os fantasmas? Tinham ido embora com a dedetização. Parênteses: me divirto pensando nos fantasmas que moram nos teatros. Penso em quais teatros estão com tais fantasmas. Quando eu morrer, vou escolher um para morar, me desculpem, mas vou. Prometo não assustar ninguém, mas vou ensaiar à noite. Penso muito em ir para o Theatro São Pedro, em Porto Alegre; não sei se tem vaga, se tem pauta (rsrsrs). Isso é uma das minhas loucuras. Mas voltando à temporada da ‘Alma Imoral’, só de lembrar daquela época, tenho vontade de chorar. Vontade de abraçar cada espectador que foi até o teatro assistir naquele momento. Uma loucura de amor e coragem.
UMA ROUBADA: Certa vez, hum… Vou chamá-lo de franco-atirador. Um homem que tinha morado nos EUA foi assistir à “A Alma” e ficou apaixonado pelo trabalho. Disse que ia nos levar para Nova York, investir na peça, na viagem e íamos dividir a bilheteria, meio a meio. Fizemos várias reuniões. Parecia uma boa pessoa. Ele conhecia uma amiga minha, que depois me contou não ter coragem de me contar certos fatos sobre ele, de tão entusiasmada que eu estava em fazer a peça em NY. Ele nos propôs um pré-contrato no Consulado Americano, que assinamos, assumindo a responsabilidade pelos vistos e passaportes. Tudo parecia muito bom.
Um dia, disse que já tinha adiantado 10 mil dólares para garantir um teatro bem localizado. Detalhe: precisava de dinheiro para a divulgação, mas que a gente não se preocupasse com isso: ia conseguir verba com pessoas da alta sociedade para anúncios nos jornais brasileiros e americanos. O Zé Maria, nosso diretor de produção, começou a desconfiar. Primeiro, descobrimos que ele não tinha pago os 10 mil dólares, mas engolimos a desculpa, afinal, a pauta estava reservada. Os amigos da alta sociedade nunca apareciam. Um dia, ele descobre que temos uma amiga em comum, me disse que ela conhecia vários empresários, todos muito bem-sucedidos, que eu devia pedir os contatos. Relutei. Mas, também, qual era o problema? Liguei pra ela, que me passou o contato de um empresário que conhecia meu trabalho e tinha interesse em levar peças para o público brasileiro em NY. Passei esse contato para ele, e foi marcada uma reunião. Mas o negócio ia de mal a pior. Ele falava uma coisa, fazia outra. Zé Maria, Nilton Bonder e eu já estávamos muito cabreiros.
Resolvemos então organizar uma reunião. Avisamos à secretária que, se ela e o empresário desconfiassem de alguma coisa, que nos ligassem. Durante a reunião, a secretária liga: “Clarice, o seu representante está aqui conosco, e pede o valor X para divulgação da sua peça em NY. Estamos achando muito alto. Vocês confirmam esse valor?” Era um absurdo o valor. “Não, não confirmo”. Nilton Bonder, na linha: “não confirmo”; Zé, na linha: “não confirmo”. Ele ficou doido. Ele não esperava. E nós, aliviados. O cara só queria se dar bem. Agradeci a todos, pedi mil desculpas pelo tempo perdido, e assim acabou a história. Dias depois, liguei para a minha amiga, que já sabia de tudo. Disse que ele um dia tinha sido um bom sujeito. Eu estava triste, mas tentamos.
UMA IDEIA FIXA: Que meu filho (Vitor, 23 anos) consiga ser um homem feliz, apesar do mundo perturbador que tanto assombra nossas mentes. Que ele consiga se engajar nas lutas que valem a pena. Que a alegria esteja com ele noite e dia. Que a desesperança não o alcance. Que encontre o amor na profissão, prazer e desafios que façam sentido. Penso nisso todo dia.
UM PORRE: Quando eu era adolescente, tomei um porre de vinho de garrafão. Estava em Teresópolis, com a minha melhor amiga, Débora. Ela me contou que passei a noite inteira cumprimentando todas as pessoas que passavam por mim na rua. Eu estendia a mão para todas elas. Eu lembro desse porre. Eu cumprimentava cada um e chorava – um choro por dentro. Foi um dos primeiros porres. Fiquei comovida com tudo, com a vida; depois, não me lembro de mais nada. Ela conta que conseguiu me levar pra casa, me colocou debaixo do chuveiro de água fria; disso eu lembro, do susto! E que acordei, dia seguinte, bem-humorada. Todos os porres foram na adolescência e ao lado da Débora. Confiava nela. Um dia, quase morri afogada no mar de Copacabana. Estava de ressaca de um porre que tinha tomado na noite anterior. Nadei para muito longe da praia. Metida a valente. As ondas ficaram grandes, não tive fôlego para voltar. Tinha 17 anos. Um salva-vidas me resgatou. Me sentei na areia, ofegante, olhei para o mar. Entendi. E nunca mais quis saber de beber, só de estar viva. Agradeci. Já tive várias segundas chances… Me sinto privilegiada por isso.
UMA FRUSTRAÇÃO: Quando criança, quis ter um cachorro. Meus pais não deixavam. Então tive dois amigos imaginários: um Cocker Spaniel branco e outro, preto. Eles me acompanhavam em tudo. Dormiam no meu quarto, me levavam para a escola, me levavam às festas, conversavam comigo, eram meus amigos. Quando meu filho Vitor completou 6 anos, ele quis um cachorro. Ah! Não tivemos dúvidas: fomos a um canil de um amigo e levamos um Golden Retriever pra casa. Eu estava realizando um sonho. Com um álibi poderoso: era para o meu filho. Dogui viveu 16 anos conosco. Partiu este ano; até hoje sinto muitas saudades. De uma frustração de infância a uma paixão na vida adulta. Meu filho completou 23 anos semana passada. Eu perguntei: “Quer um Golden, filho?” Ele respondeu: “Mãe, dá um tempo…” Ah, se ele tivesse dito que sim!
UM APAGÃO: Estava eu dentro do elevador do meu prédio, quando aconteceu um apagão na rua. A rua toda sem luz. O elevador para entre a parede do primeiro andar e a portaria. Aquele nervoso. Aparece um morador. Era justamente um cara de quem eu não gostava. Pesava sobre ele várias acusações de assédio moral, assédio sexual, um cara estranho. Ele grita: “Quer ajuda?” “Deus, por que o Senhor faz isso comigo?”, pensei. Eu tinha duas opções: ou responder “não, vou pro poço, mas não quero sua ajuda”, ou “sim, por favor”. Demorei tanto a dizer alguma coisa que ele começou a forçar a porta e conseguiu abri-la. Era só pular. Pulei. Agradeci. E dia seguinte já não falava com ele. Até hoje, penso nessa história, nesse apagão da Light, nesse encontro doido, no escuro dos sentimentos que nos habitam.
UMA SÍNDROME: Nasci com medo de avião. Minhas irmãs foram a Israel, tiveram a experiência de morar em Kibutz. Meus pais me ofereceram também essa oportunidade: não fui, de jeito nenhum. Só fui viajar de avião aos 36 anos, apaixonada pelo Zé Maria, pai do Vitor. Uma história engraçada: Zé Maria é músico. Ele ia tocar em Portugal. Me convidou. Início de namoro. Eu queria ir, mas estava com medo de viajar. Ele tinha passagem pela TAP. Eu disse que de TAP eu não ia de jeito nenhum. E Varig? Varig eu ia. Varig só tinha um acidente grave no currículo (na verdade, isso é coisa de quem tem síndrome!). Compramos a passagem da Varig, e ele me esperou no aeroporto de Lisboa. Quando cheguei ao hotel, chorei por duas horas seguidas. Eu soluçava. Eu não conseguia falar nada, só chorar alto e em bom som. Ele não entendeu nada (a gente já riu muito disso). Ele disse que ficava me vendo chorar e pensava: “Caraca, essa mulher é louca!” Eu tinha atravessado o oceano! Eu tinha vencido o meu medo! E a nossa viagem foi maravilhosa. Quando cheguei ao Rio, fui a uma astróloga e contei sobre a minha experiência, falei do meu longo choro. Ela jogou runas e disse que, em outras vidas, eu fui uma mulher exilada, que nunca voltou ao país de origem (“Yo no creo en brujas, pero que las hay las hay”). Só sei que algo curou dentro de mim; hoje viajo de avião, tranquila.
UM MEDO: Medo de o Brasil voltar a ser uma ditadura. Não!
UM DEFEITO: Trabalho demais. Sou apaixonada pelo teatro; cada peça é uma aventura nova. Eu fico envolvida. Amo demais. Para quem trabalha comigo, é uma qualidade, mas, para a família, chega a ser um defeito. Eles sentem minha falta, os amigos também. Eu custo a tirar férias, nunca tô disponível para ir aos aniversários, aos encontros. É um milagre quando apareço. Eu só falo sobre as peças quando tô ensaiando… Na verdade, uma qualidade e um defeito.
UM DESPRAZER: Ver os outros sofrendo.
UM INSUCESSO: Sinto isso quando fico doente, acho um insucesso. Não saber cuidar da saúde? Fico possessa comigo.
UM IMPULSO: Confiar em tudo que me dizem. Confiar nas pessoas. Desconfio a contragosto. Meu impulso é confiar.
UMA PARANOIA: Quando meu filho começa a demorar e não atende o celular. Entro em paranoia (que ele não leia esta entrevista). Ele fica possesso com isso. Quer que eu durma, relaxe. Claro que, agora, ele está com 23 anos, eu durmo, mas, quando ele tinha 15 e não me avisava onde estava, era uma paranoia total. Mas, vou te contar…. Quando essa sociedade vai melhorar? Quando as mães poderão dormir em paz? Os pais? Quando a violência terá fim? O que precisamos fazer? O que vamos fazer? Chega. Paz. Queremos ir e voltar tranquilos. Queremos educação, arte, cultura, um mundo de confianças recíprocas.