O ano de 1968, que acabou por transformar completamente o modus vivendi dos cidadãos e o modus operandi das sociedades ocidentais, começou de maneira imprevista. De maneira tão inesperada quanto a pandemia virótica que atinge o mundo de hoje, já globalizado. 1968 e 2020. 52 anos os distanciam.
Talvez seja instigante pensar que não são só as guerras mundiais, a Primeira e a Segunda, para ficar com exemplos do século XX, que transformam o comportamento comunitário dos cidadãos e a governança das nações.
No lado aquém Atlântico, não se pensaria que, em 1968, a educação universitária, ao ser estendida ao grosso da população jovem norte-americana, levaria à criação três anos antes, em 1965, do grupo Studentes for a Democratic Society (SDS), no estado da Califórnia. E menos se teria pensando que os valores libertários defendidos pelos colegas de Angela Davies, com o apoio de seus sábios professores, como o filósofo Herbert Marcuse, se espraiariam por toda a nação ao norte. Menos ainda se teria pensado que, no futuro, essa onda se fragmentaria em micro movimentos políticos, um tanto anárquicos e um tanto violentos, mas tão amplos e vitoriosos quanto o Women’s Lib, o Black Panthers, os Young Lords porto-riquenhos e, de sobra, a liberação gay que se iniciou num bar do Village.
No lado além Atlântico, fui testemunha ocular. Estava em Paris e lembro que em fins de abril de 1968 defendi a tese de doutorado na Sorbonne. Tinha deixado a Cité Universitaire e passava umas semanas no Hotel Cujas, em pleno Quartier Latin. Na Place de la Sorbonne, não havia indícios que, no mês seguinte, o de maio, paralelepípedos estariam sendo arrancados das vias públicas para servir de barricada contra o avanço dos tiras franceses. Os famosos flics encharcavam na fonte mais próxima suas capas negras de borracha (ou de plástico) para que as chicotadas nos jovens rebeldes fossem mais sanguinárias.
É bom observar.
As guerras-frias nunca foram tão boas conselheiras quanto as guerras mundiais. Não há que defender nem a umas nem a outras, nem opor umas às outras. No entanto, não há dúvida que foi o clima de guerra-fria, mantido pelos Estados Unidos da América, primeiro contra a União Soviética e agora contra a China, que está sendo responsável pelo desmonte das notáveis conquistas libertárias do último meio século. Através de fake news, a extrema-direita vem pouco a pouco abocanhando os poderes nacionais, julgando lamentáveis as grandes conquistas humanas.
Tenha-se um exemplo-chave. O modo como está sendo constituído o Supremo Tribunal dos Estados Unidos durante o atual governo daquela nação. As grandes pendências cidadãs passam por lá e se definem por lá. A morte recente da juíza Ruth Bader Ginsburg escancarou o escândalo. Ainda aquém Atlântico, o juiz Celso de Mello se aposenta e o governo nacional abre o jogo de cartas marcadas.
Há que aprender.
Quem sabe se a inesperada pandemia virótica — nem guerra mundial nem guerra fria — não nos trará outras e extraordinárias conquistas libertárias, salvando-nos para até quando for dos governos de Trump e de Bolsonaro.
Retomo: para até quando for. Ao contrário dos acontecimentos de maio e da pandemia, reações conservadoras estão sempre de guarda, à nossa espreita e espera nas esquinas da Vida.
É bom acreditar.
Quem sabe se, aos 84 anos de idade, não me aguardam a vacina e o espetáculo de jovens brasileiros vestidos dos parangolés coloridos de Hélio Oiticica, a dançar e a cantar pelas ruas cariocas: “Eu quero é botar meu bloco na rua / Brincar, botar pra gemer / Eu quero é botar meu bloco na rua / Gingar, pra dar e vender”.
Não haverá quem diga que eu dormi de touca.
Foto: Cláudio Nadalim Diamantina
Silviano Santiago é escritor, professor, tradutor. Depois de ler um de seus livros, você jamais vai tirá-lo da sua lista.