O título desta coluna, ‘De Próprio Punho’, me remete a um movimento de rearticulação com a vida. Ao ler essa expressão, imagino imediatamente uma mão segurando uma bela caneta, de preferência, de bico fino, e uma folha de papel onde a tinta percorre o fundo branco, completando o vazio com uma bela história. Assim é a vida – ela vai se preenchendo a cada instante. Podemos rascunhar e podemos também rasgar papéis, reescrevendo novas histórias. Assim é com todo mundo e assim também foi comigo. Hoje sou psicóloga. Mas como cheguei até aqui? Tentando me reinventar.
Comecei esta jornada profissional depois do acidente de helicóptero, em Trancoso, que levou minha filha, minha querida Mariana, no auge de seus 20 anos. Agora, no meu consultório, ouço pessoas falando do seu dia a dia e tentando elaborar novos sentidos para as suas existências. A recorrente pergunta é: o que fazer para mudar a vida e traçar novos caminhos? Foi assim que acabei ouvindo muitos pacientes, mas me especializando em tratar de pessoas que tinham perdido seus amores – filhos, maridos, irmãos, pais, familiares.
Sabemos que todos vamos, sem exceção, em algum momento da vida, perder alguém. No entanto, este ano de 2019 chegou trazendo eventos demasiadamente tristes. Muitas mortes prematuras. É tempo de luto. De um luto coletivo em que um grande número de pessoas, de diversos lugares, comovem-se juntas e choram, juntas, a mesma dor. Refiro-me a Brumadinho, aos meninos do Flamengo, às fortes chuvas que causaram tantos estragos e tantos sofrimentos. E me refiro também à morte de Ricardo Boechat.
Fui entrevistada duas vezes por ele. Em uma delas, falamos do lançamento da Cartilha Jurídica do Luto, lançada pela FGV e pelo Instituto Mães Sem Nome. E, por ironia do destino, durante a entrevista, muitas de suas perguntas foram sobre o acidente de helicóptero de 2011. A elegância permeou o diálogo o tempo todo. Quando soube da notícia da sua morte, pensei: ele tinha que ir justamente assim?
Gostaria de conversar com sua mãe, mulher extraordinária. Quem sabe poderia acalentá-la? Afinal, nossos filhos partiram da mesma maneira – mas acho que acabaria falando de impunidade, da falta de fiscalização da ANAC, da Vale e da irresponsabilidade como política empresarial – de tudo isso que acontece neste país e que muito me revolta. A perda de tantos ídolos nos faz sentir meio órfãos. Mesmo sem termos uma relação direta com as vítimas, sentimos a dor da perda. É uma comoção nacional, uma dor solidária.
Todos esses eventos nos fazem pensar sobre a brevidade da vida e reviver nossos lutos pessoais. Pegamos uma carona para chorar pelas nossas dores através das dores alheias. Como todas essas mães vão atravessar esse sofrimento e reescrever suas vidas? O que fazer após grandes tragédias? Muito difícil responder a questões tão íntimas; cada um acha sua fórmula, cada um dá seu jeito, dentro do seu tempo emocional. É um exercício diário de fortalecimento, uma trajetória longa e de muito sofrimento. Com ajuda terapêutica, o processo do luto pode ficar mais suave; mas nem todos têm acesso. É uma dor para sempre.
Algumas coisas muito simples podem ajudar: manter o contato com a natureza, com o sol, fazer caminhadas, tentar se perceber, sobretudo por meio da respiração; meditar, ouvir música, namorar, ler bons livros, estudar – mas isso tudo só se consegue depois que o furacão passou, muitos anos depois. Depois de pensarmos, ruminamos e repensamos. Passado o tempo, aproveitamos o momento que nos foi dado para reavaliar – depois que entendemos que muita coisa pode e deve mudar, e que tudo o que fazemos reflete no todo. Para se reinventar, é preciso mudar muita coisa. É preciso muito empenho íntimo.
A minha esperança é que cada reforma pessoal venha a desembocar, necessariamente, em uma reforma social. Não devia ser preciso sofrer tanto para se renovar, mas isso acaba acontecendo.
Depois de perder a filha num acidente de helicóptero em 2011, na Bahia (Mariana Noleto, então namorada de Marco Antonio, filho de Sérgio Cabral), Marcia Noleto resolveu estudar Psicologia, dividindo sua vida entre antes e depois da tragédia.