Brinco constantemente dizendo: “Não sei se virei fotógrafo por causa da macumba, ou se macumbeiro por causa da fotografia”. Essas duas facetas da minha vida se misturaram tanto que só consigo dizer que gosto mesmo é de fotografar macumba.
Meu primeiro contato com as religiões de matriz africana aconteceu quando eu aprendia a fotografar. Como quase todos que começam na área, acompanhava grupos folclóricos nas ruas para praticar, até que, um dia, seguindo um cortejo, acabei num terreiro de umbanda. Inicialmente tive muito medo, mas fui convidado a conhecer a casa e, depois de uma conversa com um preto velho, me encantei pelo universo.
Entre sonhos com caboclos, boiadeiros e pombagiras, por obra do destino, ou dos orixás, nesta mesma época, fui a uma exposição do fotógrafo Pierre Verger – uma mostra sobre seu trabalho nos candomblés da Bahia da década de 50. Saí certo de que era isso que eu queria fazer. Retornei inúmeras vezes ao pequeno terreiro que visitei pela primeira vez e ali comecei, tanto na vida do santo quanto na fotografia. Quanto mais fotografava, aprendia, e quanto mais vivenciava a religião, fotografava.
Nunca sofri nenhum tipo de proibição, acredito que pela bênção de Exu – todas as portas de tendas, barracões e casas de reza sempre estiveram abertas para mim. Pais de santo de todo o Brasil me receberam em suas casas, certos de que eu estava ali para somar. A fotografia, apesar de relevar mistérios muitas vezes proibidos para os não iniciados, é necessária para documentar nossas práticas religiosas e levar informação à sociedade que tanto ataca os terreiros.
Passadas duas décadas de macumba e fotografia, enquanto ia para um evento religioso, sofri uma tentativa de atropelamento criminoso. Por estar vestindo roupas religiosas que indicavam minha fé, um carro subiu na calçada para me atingir. Como precisei saltar para não ser ferido, não consegui ler a placa do veículo, apenas um grande adesivo escrito “Somente Jesus Salva”.
Como religioso e iniciado para Ogum, o orixá da guerra, me vi chamado para o combate; como fotógrafo documentarista, o chamado foi o mesmo. Diferente de meu protetor, em vez do Obé (o facão), usaria minha câmera como arma. Tudo, porém, foi paralisado pela pandemia de covid-19.
Em casa, sem poder fotografar, mais uma vez em sonhos, vi Obaluaê, o orixá das chagas. Em suas poucas palavras, ele afirmou que eu perdia tempo e que podia fotografar meus irmãos e irmãs rezando. Pelo fechamento dos templos, eles iriam fazer como os ancestrais: retomariam as ruas, florestas e cachoeiras. Fariam como os antigos kumbas – vindos da região central da África, onde hoje entendemos como Angola e Congo, os Bantus chamavam seus sábios, poetas e feiticeiros dessa maneira. Devido ao tormento da vida imposta pelo processo colonial, somente no encontro dessas pessoas, a m’kumba é onde os escravizados tinham algum tipo de alívio ou festejo.
Vi assim uma oportunidade de não apenas retratar o momento histórico que religiosos afro-brasileiros vivenciavam, mas também mostrar como eram os kumbas atualmente, que, assim como eu, resistiram à grande intolerância religiosa no Brasil.
Graças ao apoio de bolsas e prêmios, como os da National Geographic Society e do Pulitzer Center, pude fotografar religiosos em todo o País, em seus momentos mais íntimos de fé – como eles reafirmavam suas religiosidades e, principalmente, como essas religiões e culturas estão presentes no cotidiano brasileiro.
Logo o trabalho tomou o mundo e foi publicado em diversos países e exposto em festivais prestigiados. Com a bênção de Oxum, a senhora do ouro, o trabalho se multiplicou e recebeu prêmios internacionais. Logo foi reconhecido no Brasil, e tenho a felicidade de exibi-lo pela primeira vez aqui, no local onde a maior parte dos kumbas chegou nestas terras – onde muitos deles, infelizmente, foram enterrados e que, de alguma forma, abençoam este trabalho, no Instituto Pretos Novos.
Gui Christ é fotógrafo e também iniciado no Candomblé e na Umbanda. Ele uniu suas experiências na exposição “M’Kumba”, a partir da sua própria vivência religiosa, em 15 fotos com curadoria de Marco Antônio Teobaldo, com inauguração neste sábado (14/01), no Instituto Pretos Novos (R. Pedro Ernesto, 32, Gamboa). A mostra já esteve na Alemanha, Suíça, Argentina, Inglaterra e Índia, onde ganhou o Indian Photo Fest, foi finalista do Lensculture Portrait Awards 2022 e selecionado para a edição com as melhores imagens do fotojornalismo mundial segundo o Pulitzer Center. Publica trabalhos em veículos, por exemplo, Time Magazine, The National Geographic Magazine, The Washington Post, Billboard e Esquire.