Estou com um garfo e uma faca na mão, mas o que quero mesmo é uma colher. É sempre assim: o que eu quero não tenho e o que tenho não preciso. Será que sou o reflexo de alguma coisa? Alguma síndrome? E a colher? O que significa além da coisa prática, essa de colher esse amontoado de molho de tomate que se acumula debaixo do meu fettuccine “pardo-hidrado-inchado”, manchado de “pequenas pétalas de couve de tundra siberiana”. Pois é, não é a primeira vez que sou cobaia de chef – a última foi em 2019, em Copenhagen. Sim, no Noma.
Só que, dessa vez, eu não comi, só fiz mímica. Quem comeu foram meus amigos, atores de teatro e cinema notáveis da capital. O chef René Redzepi chegou ao meu ouvido e perguntou: “Does it taste good?”
“Oh, yes, René! Excellent, as always. Thank you.”
Vivemos num teatro, não é? Vivemos de ilusões, seja lá onde for. Vivemos de datas em datas, comemorando seja lá o que for, tristes, alegres… Batemos palmas, vaiamos, seguimos normas que nem entendemos, nem sequer questionamos de onde vieram, quem as fez, por que as colocaram ali etc. Votamos em patifes consagrados, nazistas bosteados, como se a história não existisse. É como se essa colher não existisse pra catar a merda deixada no fundo do prato, e o fluxo de mentiras não se acumulasse e… Sim…
….Esse enorme fluxo de mentiras, que nos servem nesses pratos sem fronteiras, fosse um fettuccine que escorrega por entre as garras do garfo, deslizando como o seboso Lúcifer passeante no círculo terceiro de Dante (ou qualquer que seja); a lama, o pecado da gula, todos atolados, afundados numa lama turva debaixo de monumentais fake news, sozinhos, cada um em sua própria solidão, isolados pelas suas próprias incapacidades, sem poderem se comunicar uns com os outros.
Vivemos num teatro. Mas o teatro não é de mentira: ele se faz de mentiroso (às vezes) para contar algumas verdades. Verdades essas bem pungentes até. Sim, se não fosse assim, me diga uma coisa: qual outra arte estaria de pé há tanto tempo?
Quanto tempo? Os gregos? Querem calcular? Ah! Ah! — então, vamos lá: os romanos? Os indonésios? Os indianos (sânscrito), chineses, egípcios? Qual calendário querem usar? O Gregoriano? Ufff! É exaustivo. Pra deixar a coisa mais nivelada e não entrarmos em discussões, vamos nivelar três mil anos. Está bom, não? Sim, três mil anos. Por aí, sim, mais ou menos três mil.
Será que sou o reflexo de alguma coisa? Sim, sou a continuação de uma geração que buscou a liberdade e o fim do racismo, fim das guerras, das perseguições, e o início do que chamavam de “era de Aquário” (bobagem). Sim, feminismo, causa gay, causa LGBTQ, fim das opressões e fim do gap social. Igualdade para todos. Deve estar na ponta da língua de cada um: utopia né? Não, não é.
E na era do “Black Lives Matter” e nesse pus (leram certo: pus) Trump-Bolsonaro depois de termos Obama, como me sinto? Progredimos?
“Sim: progredimos. Porra! Não venham dizer que…”
“Não”.
“Ah, não?”
(“o que foi, garoto?) (o garçom do MOMA – ator Lars – veio fazer uma confidência).
(Sou interrompido…..)
“Gerald: as coisas nunca estiveram tão, tão tão ruins. Nunca. Nunca as coisas estiveram tão desesperadoras. Nunca. Já nem durmo, mas, quando durmo, durmo em pé!”
“É mesmo, Lars? Jura, Lars ? Está pior que as fogueiras da Inquisição? Pior que o Terceiro Reich. Jura? Está pior que o Crash da bolsa e a fila da fome, a fila do pão, a fila da sopa de 1929? Jura? Estamos no septuagésimo sexto ano de paz mundial.
Paz mundial, Lars!
Pois é. Ninguém tem memória. Terá sido o excesso de informação? Tanta notícia? Tanto fake news? Tanta coisa? Junta? Ao mesmo tempo? A geleia geral do Gil era isso, então?
E a colher? O que significa além da coisa prática, essa de colher esse amontoado disso? Da geleia geral? Eu também sou lento mesmo diante do meu momento de mímica e do imaginário imaginado fettuccine “pardo-hidrado-inchado”, manchado de “pequenas pétalas de couve de tundra siberiana”.
Minha avó, Paula Landsberg Aufricht, olhou com olhos irados nos meus olhos, sabe?… Algo como uma faísca que atravessa os séculos, “Uma Faísca Que Atravessa os Séculos”, e me disse: “Cuidado. Cuidado!” “Vorsich! Vorsicht! “Um dia, o jardineiro se volta contra você. Ele vem segurando uma rosa na mão, uma rosa que você plantou. Ele vem andando na sua direção, devagar, muito devagarinho e, com o pé esquerdo, amassa, com toda força e toda a RAIVA, essa rosa, esmagada, destroçada, morta, sangrada, a bloody rose, horrenda imagem e devagarzinho abre seu casaco pra revelar uma suástica pendurada em seu pescoço.. e, e… entredentes rangentes disse: “Procure essa resposta nos meus livros. Tenho 12 livros publicados. Faça a sua pesquisa. De nada vai adiantar porque, daqui a poucos, meses, você estará apodrecendo numa espécie de Auschwitz ou Buchenwald.”
Pois….. “Vorsicht! Vorsicht! Cuidado! Cuidado….”. “Pequenas pétalas de couve de tundra siberiana”…. O René Redzepi sabe o que é um Gulag e você, também. Quem lê sabe. Quem não se deixa enganar pela mídia-merda sabe. Se oriente rapaz!
Estou com um garfo e uma faca na mão, mas agora é tudo de que preciso.
“Não tem mais essa de geleia geral”… Remungam essas lesmas como se tivessem a autoridade moral ou ética, ou mesmo acadêmica, ou até empírica, pra dizer tal coisa. No fundo, no fundo, eu sei que isso que resmungam pode ter um fundo de verdade. Talvez a coisa aqui esteja mesmo pior que nunca, porque estamos, por assim dizer, vivendo justamente dentro dessa poça de conflitos falsos; tudo mentira, pois estamos numa transição entre círculos Dantescos, digamos, do terceiro pulando pro vigésimo segundo (já que só existem nove, e já que o nono se subdivide numa orgia de gelo e purgatório, paraíso e… Sim: é um mistério esse molho!
É… Um mistério esse. Talvez eles saibam algo que eu não sei. Quem sabe? Eu queria ter tomado tudo, sabe? Fui cauteloso. Mas por que? Ou melhor, o ser “pós-moderno” não é um ser experimental? Ou melhor, o ser experimental “pós-iconoclasta”? E o pós-iconoclasta não se destrói por si só?
Por isso, eu sei que aquele garoto me disse a verdade; ele tem um fundo de verdade. Talvez a coisa aqui esteja mesmo pior que nunca porque estamos, por assim, dizer, vivendo justamente dentro dessa poça de emoções, nos enxergando com os olhos deles nos vendo, e não com os nossos próprios! É uma confusão. Os algoritmos agora são os repiniques interiores se voltando contra nós e os bumbos da Mangueira. CHEGA, GERALD, CHEGA! CHEGA!!!
É 2023 chegando. Viva!
Comecei com um garfo e uma faca na mão, querendo mesmo uma colher. A colher me levou a uma cama. Pois é, desviei-me do artigo: ossobucos do oficio. Foram os algoritmos das lembranças dos meus mortos queridos recentes: Gal Costa. Sim, Gal. Quero honrá-la, dando ao Rio de Janeiro o que ainda possuo de originais (croquis, esboços, escritos dos ensaios) do show glorioso que fiz com você, o “Sorriso do Gato de Alice”. O prefeito Eduardo Paes, de início, se mostrou super a fim e… Os algoritmos parece que o desviaram (rs). Chega Gerald, chega, chega! É 2023 chegando. Viva!
Sim, Gal Costa. Gal no Rio. Dunas da Gal. Tem que acontecer.
Está uma neve violenta lá fora. Me mudei pra uma cidadezinha chamada New Paltz, estado de Nova York, uma hora e meia ao norte de Manhattan. Nunca morei fora de Manhattan. Quer dizer, fora as épocas de Londres, Rio, São Paulo, Suíça, Alemanha.
Nossas mãos dadas, braços estendidos e mãos dadas, mãos negras, brancas, gays, héteros, cristãs, judaicas, islâmicas, seja lá o que for…. Sim, existem quatro outras camas do nosso lado, ainda desocupadas. Aliás, desocupadas, não. É que aqueles que nelas estiveram morreram nessa pandemia.
Ainda luto por um princípio. Sim, um único princípio. Aliás, dois, aliás, três:
Tolerância
Liberdade
Amor