Acredito que cada um tem seu tempo para entender as mudanças do mundo e para dimensioná-las também. A chegada do coronavírus, de imediato, pra mim, foi acachapante. Percebi que o mundo estava entrando numa outra esfera de (im) possibilidades, (in) consciências e (in) variáveis fora dos nossos planinhos cotidianos. Fiquei obcecada com o noticiário, vendo aquelas imagens da Itália, com os doentes isolados, aqueles EPIs todos, o pânico e a tristeza instaurados. Dei uma surtada básica.
Pensei: “Isso tudo está a caminho de nós, em Portugal”. Quem de nós, amigos, conhecidos, vai pegar? Quem de nós vai morrer? E se isso, e se aquilo? A cada dia que eu acordava saudável, simplesmente, não acreditava e agradecia; aliás, continuo nessa. O que é mesmo mais importante que a vida? O que é mais importante que a saúde? Bora colocar os pingos nos is, né? Que mundo é este, bizarro, que criamos para nós mesmos? Preocupados com aparências, com o que os outros vão dizer…
Eu já vinha, desde muito tempo, nessa reflexão, sabe? Por isso, despedi-me do meu universo profissional, que sempre foi a moda — com muita gratidão, mas com muito alívio também. A gente pode atribuir uma série de coisas boas ao cargo de uma editora de moda: estimular a autoestima das pessoas, trazer ferramentas que vão ajudar os outros a se verem de outra forma; mas tem também aquela questão do consumo, de trazer necessidades desnecessárias, que, muitas vezes, também trazem angústias, dívidas e sentimentos de inadequação — sem entrar na seara das imagens, porque isso já é tema para outro texto.
Conversei comigo e entendi que aquele deslumbramento que um dia eu tive — e foi importante — está mesmo muito fora de moda. Pra mim, tá? E daí, no meio daquele mix de crise existencial com pânico e gratidão, me liga uma conhecida; precisava falar comigo. “Claro, diga lá!”. “Estou gerenciando algumas contas nas redes sociais e queria convidar você para abrir seu guarda-roupa e falar do seu estilo.” Pensei: “Gente, o mundo está acabando, e ninguém avisou pra ela!” Com educação, agradeci: nem na pandemia, nem fora dela.
Não cabe mais isso no mundo que eu vislumbro. Na sequência, outra amiga: “Que tal um vídeo-diário da sua quarentena em Portugal?” Do fundo do meu coração: “Mas e se eu morrer depois, como vai ficar isso?” Imaginei o ridículo de mostrar minha rotina antes da morte. Ok, eu estava surtada, mas vamos lembrar que se pode morrer a qualquer minuto, de qualquer coisa: esse medo é o grande tema da filosofia, dos debates existenciais. O que a gente vai deixar de lembrança por aí?
Passaram-se os dias, mergulhamos mais profundamente em nós mesmos. Tive altos e baixos. Outro ponto muito construtivo disso tudo foi que… hey, é ok estar deprimido. Ninguém é tão feliz como mostra no Instagram. Hey, é ok comer o que a gente quer, dormir até mais tarde, olhar para os nossos com afeto e a percepção latente da impermanência. Tudo isso é uma passagem. Vamos agradecer tudo que temos e parar de sofrer pelo que não temos.
Bem, acho que não fui só eu que paniquei: em uníssono, toda população de Portugal mais o Presidente da República, mais o Primeiro-ministro, mais a oposição – juntinhos, cada um com a sua dor, na sua casa. Foi lindo! O exemplo italiano nos poupou de um filme de terror em máxima escala. Não tivemos pico; não tive, até agora, conhecidos ou amigos infectados. Acostumei-me a conviver com esse novo cenário. Eu me imaginei confinada até setembro, mas Portugal foi tão show que, em junho, começou o desconfinamento.
Vi amigas, antes apavoradas com “o que fazer com as crianças”, reconectadas mais que nunca às suas crias. Vi um olhar nostálgico daqueles dias históricos em muitos relatos. Vi e estamos vendo aquele mundo pré-covid desmoronar para abrir espaço ao novo — às vezes, com muita dor; às vezes, com resistência; às vezes, com entrega. Mas, no meu otimismo, acredito que sairemos melhor dessa.
Já fui a restaurantes, praias; afinal, é verão por aqui, mas sabendo que, sim, uma hora podemos pegar isso. A performance inicial de Portugal agora está substituída por uma desconfiança internacional por causa de novos focos, principalmente em Lisboa. Se vier a segunda onda, o buraco será mais fundo, e assim seguimos na certeza da incerteza onipresente.
Minhas angústias hoje passeiam pelo Brasil, pelo Brazil (obrigada Aldir Blanc, gênio, vítima da covid, que nem sequer foi mencionado pela então ministra da Cultura), pelos nossos Brasis. Eu fico com esse país da melhor música do mundo. Sigo Paulinha na cola do Kombucha e da paçoca do Caetano; sigo o DJ Zé Pedro, com a melhor curadoria de frases e músicas; sigo Gilberto Gil, Djavan, Arnaldo Antunes; sigo a poesia e a nossa identidade mais enraizada dentro de mim.
Me desculpem, mas eu não abro mão de ouvir Chico Buarque por causa de política. Eu fico com essa gente que nos deu e dá, todos os dias, motivos para amar e nos orgulharmos de ser quem somos. Minhas angústias estão com a família que, tão cedo, não posso ver de perto. E rezo porque acredito no poder da palavra e da oração. Vai passar, mas não vai ser assim como, de modo geral, estava-se imaginando. Vai passar, mas vai arrastar e vai transformar muito ainda. Coragem, minha gente!
Meu projeto de vida aqui, ao empreender pela primeira vez, está intrinsecamente ligado a esta nova missão que dei pra mim: fazer algo melhor para as pessoas e para o mundo. Quem tiver interesse, é só visitar meu perfil @adribechara — está tudo lá, à espera de novas parcerias que me possibilitem continuar. Aceito as dificuldades e abro meu peito para o novo. Vejo palavras fundamentais nesta nova trilha: coletividade, gentileza, humanidade, pluralidade, antirracismo. Está tudo no brand book da minha marca e, espero, no brand book da minha vida em Portugal. E, pra terminar, como diria Chico, “mesmo com todo problema, todo sistema, toda Ipanema, a gente vai levando essa gema”!
Adriana Bechara, 48, é jornalista, ex-diretora de moda da Glamour, ex-editora de moda da Vogue, com passagem por Jornal do Brasil, O Dia, Quem, Elle e Veja Rio, entre outros. Fez uma volta ao mundo em família, com o projeto 3naviagem, em 2017, e mudou-se para Lisboa em 2018. Em breve, deverá abrir seu Welcome & Wellness Center para receber viajantes antes do check-in e, depois do check-out, no Príncipe Real, bairro da capital portuguesa.