Quando ouvi a frase “toda mulher já sofreu abuso” pela primeira vez, senti um grande desconforto. Nunca sofri abuso, pensei. Desde menina, inconformada com os papéis de gênero estabelecidos socialmente, quando a expressão ainda nem havia se popularizado, eu reivindicava minha liberdade no grito, exercitava-a nas fugas vespertinas para ganhar as ruas com os meninos, em aventuras “masculinas”. Não era fácil o embate. Nem na infância, nem nos primeiros amores que já queriam aprisionar-me com ciúmes possessivos, e eu saía escondido com as amigas, porque me recusava a ser apêndice de homem. Ainda assim, nunca, nem de longe, me senti vítima de abuso. A frase definitivamente não me cabia, mas, aqui e ali, a ouvi de novo, e de novo, e outra vez. E com a frase, relatos, relatos de abusos sutis. Sutilezas. Existe abuso sutil?
Aos poucos, vieram à tona, em minhas lembranças, cenas cotidianas compartilhadas com muitas mulheres. Misturadas a elas, passaram a fazer parte de um sentimento coletivo muitos outros relatos: a exigência do recato para as meninas e a liberdade autorizada para os meninos; o tratamento desigual entre irmãos e irmãs; o pai provedor e alicerce da família; o olhar ameaçador do taxista no retrovisor durante o trajeto para a festa; o medo de andar sozinha numa calçada à noite; a insegurança diante do policial; a insinuação de que a namorada deve transar com a melhor amiga; o namorado que monitora as redes sociais da namorada; o celular rastreado como forma de controle; o homem que pede à mulher que ria mais baixo; o sobrenome do marido incorporado no matrimônio; a reclamação da comida ou do decote; a ideia de que a mulher não deve recusar-se a fazer sexo com o marido, mesmo quando ela não está a fim; a direção alucinada depois de uma briga que deixa a mulher muda de pavor no assento do carro; o colega de trabalho, em posição superior, que se acha no direito de cobrar o que não está no contrato; o deputado feminista que prega a igualdade, mas sempre tem que fazer a primeira e a última fala; o receio de assumir os cabelos brancos; as diferenças salariais; o marido que marca território ao lado da mulher que brilha; o companheiro que diz ou insinua que a companheira está descontrolada; a criminalização e o julgamento moral da mulher por não querer seguir adiante com uma gravidez; a selfie com a amiga, enviada como álibi; o olhar acusatório que ratifica a eterna culpa de Eva.
De repente, aos poucos e com grande espanto, foi impossível não reconhecer uma ou muitas agressões sofridas e guardadas nos poros, nos ossos, nos olhos, nas mãos, nos passos, na hesitação imperceptível do dia a dia. Desconheço uma mulher que não tenha vivenciado pelo menos uma das situações relatadas acima. E quase sempre sabemos, intuímos, que algo está errado. Minhas saídas escondidas dos namorados na adolescência já́ eram o resultado de um abuso que eu nem sequer era capaz de perceber. Sutil? Talvez. Afinal, eles nunca me bateram.
Pesquisando sobre o assunto, descobri que grande parte das mulheres que vivem relacionamentos abusivos tem dificuldade de perceber as violências sofridas no dia a dia, sobretudo quando não há agressão física. Todas e todos estamos implicados nessa lógica, muito embora o machismo possa ganhar requintes de crueldade e operar em maior ou menor grau, a depender da etnia, da identidade de gênero, da classe social e da região. O desejo de escrever sobre o tema me levou a outras mulheres, num movimento feminino coletivo, que fez nascer uma coletânea de muitas vozes, com autoras de diferentes regiões do Brasil e lugares sociais distintos. Somos 26 mulheres escrevendo sobre abusos naturalizados no cotidiano, histórias que atravessam todas as mulheres — autoras de 18 a 72 anos mostrando que a estrutura patriarcal atravessa gerações e que ainda estamos muito longe de resolver a questão. “Sutilezas do Patriarcado” (Editora Rebuliço) será lançado em 17/09, às 19h, na Janela Livraria do Shopping da Gávea, em parceria com o Cine Estação Net Gávea, onde haverá leitura de esquete e bate-papo com as autoras.
Mirna Brasil Portella é autora de 12 livros para o público infantojuvenil. Participa de algumas antologias, entre elas, “Vou te contar: 20 histórias ao som de Tom Jobim” (Rocco). Seu livro “Do Mar” (Escrita Fina) ganhou o selo Altamente Recomendável FNLIJ. Em 2018, “Porco de casa cachorro é” (Escrita Fina) ganhou o segundo lugar do Prêmio Biblioteca Nacional na categoria Literatura Infantil.