“Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências”, escreveu Alberto Caeiro em “Quando vier a primavera”. Sei disso, mas, mesmo ciente de que estarei privado de ter preferências, não quero, para mim, velório ou enterro.
Minha bisavó, Esméria da Conceição Carvalho Leal, era do mesmo partido: dizia que queria morrer de manhã para ser enterrada no mesmo dia. Dito e feito. Não podendo evitar o enterro, escapou, pelo menos, do velório. Instruiu que a sepultassem enrolada num lençol – um bem velho, já sem uso – e foi, contrariada, num caixão (o mais simples, para que a contrariedade não fosse tanta).
O lema “Meu corpo me pertence” pode servir para as feministas, não para os defuntos. Não há o que eu possa fazer caso alguém (a alma humana é um abismo!) resolva me botar um terno e uma gravata, me cobrir de dálias (se é para me contrariar, que seja do jeito que eu gosto) e me transformar em peça de exposição – enquanto parentes e amigos se abraçam, tomam cafezinho, comentam como o tempo está mudado e beliscam um pão de queijo, como se eu já não estivesse mais ali. E não estarei mesmo.
Se for para fazer minha vontade uma vez na vida (no caso, não literalmente), quero é que, atestada a morte, despachem-me, sem delongas, para o crematório. Cremado, descartem as cinzas. Podem pular aquela parte de ficar em dúvida entre o potinho de alumínio e o de aço inox, ou entre deixar nesta ou naquela tumba. Não será preciso esparzir as cinzas sobre o Mar Adriático ou deixá-las fluir pelas águas do rio Urucuia: um vaso de plantas serve e lá estarei eu, dando uma força para uma begônia ou uma espadinha de São Jorge, com cálcio, fósforo e potássio, que é só o que restará das minhas insônias e dos meus sonhos não cumpridos.
Mas haverá um universo paralelo em que eu talvez não seja tão mal-humorado (pelo menos depois de morto). E me façam um gurufim. Sim, um velório festivo, com música, dança, bebida.
Dizem que é no velório que a Morte escolhe a próxima vítima, e a atmosfera de festa a desconcerta, lhe tira o foco, muda seu mindset (sabe como são as Mortes contemporâneas…) – e ela vai embora com a agenda em aberto, em busca de um velório triste.
Para o meu gurufim, eu deixaria prontos um cardápio e uma pleiliste. Haveria uma jarra de ponche e outra de leite de onça, como na adolescência. Uma garrafa de Drink Dreher, como a que ficava no aparador lá de casa (era para a minha mãe, mas eu tomava às escondidas) e um garrafão de Sangue de Boi (aquele com capa de palhinha, sabe qual?), como os que meu avô comprava no Natal. Para comer, a broa de fubá da minha avó, o rocambole de goiabada da minha mãe, e pamonha salgada — aquela feita no alpendre da casa de Unaí (com requeijão moreno, vaca atolada, galinha ao molho pardo. (Depois de morto talvez não faça muita diferença eu continuar vegetariano.)
A pleiliste? The mamas & the papas, Beatles, “Nessuno mi puó giudicare”, “Datemi un martelo”, “Ponteio”, “Andança”, “Pata pata”. Nilo Amaro e os Cantores de Ébano, Golden Boys, Roberto Carlos (não, “Detalhes”, não, que pode parecer que estou rogando praga), “La question”, “To sir, with love”, “Meu mundo e nada mais”, “Travessia” (ok, tudo do Milton), “Eu e a brisa”. E quando o dia estiver nascendo, o “Hallelujah” do Leonard Cohen (na voz da k. d. lang) ou “Años de soledad”, do Piazzola. Para fechar (o caixão e a festa), “Killing me softly” ou “Io che amo solo te” — ao gosto do freguês.
Pensando bem, toquem e cantem o que bem entenderem. “Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. / Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele”, escreveu também Alberto Caeiro. Não sendo “Evidências”, está de bom tamanho.