O ano era 1984. Um amigo fazia uma oficina de escultura no MAM do RJ e me chamou para filmar. Câmeras eram objetos raros, geralmente só as televisões possuíam. O grupo de alunos (o artista plástico Ernesto Neto entre eles, todo mundo novinho, descobrindo o mundo) foi pra Cinelândia fazer uma performance. Junto com uma amiga, conseguimos uma câmera emprestada. Alguém conhecia alguém que trabalhava na Globo, e, na madrugada, a gente pôde usar uma ilha de edição vazia. Tudo era improvisado, acontecia nas brechas, improvável. Os equipamentos eram enormes, pesados, caros. Assim nasceu meu primeiro vídeo, “Intervenção urbana”. A frase “fazer vídeo” não queria dizer muita coisa. O que eu sonhava mesmo era fazer cinema, mas não achava a porta para entrar naquele clube fechado — era preciso conhecer as pessoas; e eu, filha de um médico e de uma tradutora, vinha “de fora”.
Foi assim que, um pouco por acaso, descobri o vídeo. Era uma linguagem nova, sem muita história para trás. Um pouco como eu – para quem tudo ainda ia ser inventado. Desde então, sempre me vi como alguém que navega no mundo do som e da imagem; dependendo do projeto, escolho a ferramenta. Às vezes, é o cinema; outras, vídeo, instalação ou tv. Não é um plano de carreira, são escolhas artísticas.
Em 1988, fiz a minha primeira Videocabine. À época, éramos poucos a fazer vídeos e não tínhamos como mostrá-los. Nunca me esqueço da primeira vez que fui ao Festival da Fotóptica (hoje Videobrasil, em São Paulo) e descobri maravilhada que existiam outras pessoas com os mesmos interesses: um alívio! Discutia-se muito como mostrar os trabalhos: uns achavam que a solução era a televisão; outros preferiam museus. Foi aí que pensei: e se criássemos cabines individuais nas ruas, equipadas com uma poltrona e um monitor, onde se pudesse mergulhar, por alguns instantes, naquele mundo da experimentação audiovisual? Assim como existiam cabines para tirar foto e sacar dinheiro, estas proporcionariam um serviço diferente. Logo depois, pensei: e se criássemos uma rede? Além das cabines de projeção, haveria também cabines de gravação. Assim, pessoas que não se conheciam poderiam travar um contato individual através da parafernália eletrônica. As cabines também iriam permitir a todos que escolhessem sua persona pública. Sozinho, ali dentro, o sujeito era o dono da bola: podia decidir o enquadramento, o assunto, a atitude. Hoje fazemos isso o tempo todo. As Videocabines foram as bisavós do Skype, do Zoom… Mas, numa época analógica em que a tecnologia era uma via de mão única, inverter essa relação de poder era uma ideia louca, libertária. As cabines correram o mundo e deram origem ao projeto “Parabolic People”, filmado em Paris, Dakar, Moscou, Tóquio, Nova York e Rio. Até hoje, são lembradas em muitos países.
Tudo o que fiz depois nasceu desses primeiros trabalhos, que me permitiram entender intuitivamente o que me interessava. Muita gente já disse isso, e eu repito: no fundo, estamos sempre falando das mesmas coisas, contando a mesma história, mesmo quando mudam as ferramentas, a dimensão, o alcance do trabalho. Ao longo desses anos, fiz seis longas-metragens, inúmeros curtas, experimentos, instalações, fui comentarista na tv ao vivo, diretora de tv, escrevi ficção e documentário. Vivi e trabalhei no Brasil, na Europa e nos EUA, mas, no fundo, estou sempre olhando para aquele cidadão comum, para o rosto anônimo, aquele que não está habitualmente no centro da tela, e sim geralmente no fundo, no canto, ou até fora de quadro: a criança, o velho, o empregado, o passante, o estrangeiro. Esse é sempre o olhar mais agudo, mais rico.
A instalação “No céu da Pátria nesse instante” nasceu do desejo de criar uma espécie de “arquivo do presente”, durante os anos conturbados que culminaram nas eleições de 2022. Num momento em que o país respirava o medo, onde parecia impossível enxergar mais adiante, porque estávamos presos numa espécie de eterno presente, quando o escândalo da semana passada desaparecia na sombra do escândalo do dia, me deu vontade de ver de perto como esses cidadãos comuns estavam vivendo isso. Sabia que dali nasceria um filme; sabia também que esse material permitiria uma obra de cinema expandido, algo que explodisse a tela, que existisse no espaço, que nos convidasse a interagir. Na instalação, a galeria se torna uma caixa preta, espécie de lugar nenhum. Das paredes, saem projeções de frases que ouvi ao longo de dois anos de conversas gravadas com pessoas muito diferentes. Essas projeções estão no ar, e a tela somos nós, os visitantes. Se você quiser ler uma frase, precisa usar o seu vizinho como tela, ou se contorcer sobre si mesmo. Os visitantes caminham nessa Babel, nesse mar de ideias diferentes, vindas de pessoas que estavam em realidades paralelas, não se enxergavam. Para enxergar, precisamos do outro.
Assim como nos primeiros trabalhos, tudo começa com o desejo de olhar para o outro e entender um pouco mais, através desse simples gesto, quem somos. E quem permite que isso aconteça é ele, sempre ele, o cinema.
Sandra Kogut, cineasta carioca, acaba de abrir a mostra “No Céu da Pátria Nesse Instante”, no Sesc Niterói, em cartaz até 20 de julho. A exposição é um dos resultados de um grande projeto que ela vem tocando desde 2020, gravando mais de mil horas de conversas com pessoas diferentes das mais diversas regiões do país sobre o processo eleitoral de 2022. A abertura será no dia 6 de julho. A exposição tem também um trabalho sonoro de O Grivo, grupo de música experimental, formado pelos mineiros Nelson Soares e Marcos Moreira. Em 2020, Kogut ganhou uma bolsa na universidade de Harvard, nos EUA, com a qual registrou os personagens que serviram de matéria-prima para o projeto. O material deu origem ao filme “No Céu da Pátria Nesse Instante”, que estreou no 56º Festival Brasileiro de Cinema de Brasília e com estreia comercial prevista para o fim do ano. Sandra estudou Filosofia e Comunicação na PUC-RJ.