Primeira fake news: o índígena genérico. Os indígenas constituem um bloco com a mesma cultura, compartilhando as mesmas crenças e língua. Assim, o Tukano, o Desana, o Munduruku, o Waimiri-Atroari deixam de ser Tukano, Desana, Munduruku e Waimiri-Atroari para se transformarem no “índígena genérico”.
Segunda fake news: considerar como culturas atrasadas. Os indígenas produziram saberes, ciências, arte, poesia, música, religião. Ora, os linguistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar ideia, sentimento e que não existe uma língua melhor que a outra. As religiões indígenas foram consideradas pelo Catolicismo, no passado, como um conjunto de superstições, o que é uma estupidez. Os Guarani Mbyá mantêm fidelidade à religião tradicional, resistindo às investidas de grupos evangélicos e de outras religiões. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas, não possuíam escrita alfabética; e essa literatura foi passada de geração em geração através da tradição oral. As várias formas de poesia indígena não são consideradas como parte da história da literatura nacional, não são ensinadas nas escolas.
Terceira fake news: culturas congeladas. Enfiaram na cabeça dos brasileiros como deve ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha. Quando o índio não se enquadra nessa imagem, vem a reação: “Ah! Não é mais índio, já estão de calça e camisa, usando óculos e falando português, não são índios”. Criaram uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: os ex-índios. Mas nós vestimos jeans, um tipo de roupa que não foi inventada por nenhum brasileiro. A mesa e a cadeira têm uma história que vem lá da Mesopotâmia, onde foram projetadas no século VII a.C., passaram pelo Mediterrâneo sofrendo modificações antes de chegarem a Portugal e depois, ao Brasil. O computador não é brasileiro, os milhares de itens culturais presentes no nosso cotidiano não têm suas raízes em solo brasileiro. Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos — e não deixa de ser brasileiro. Mas o índio deixa de ser índio? Nós não concedemos às culturas indígenas o direito de entrar em contato com outras culturas e de mudar como consequência desse contato. E o que é a interculturalidade? É o resultado da relação entre culturas, da troca que se dá entre elas. O brasileiro aprende o inglês não para substituir o português, mas para desempenhar outras funções. Assim, os índios aprendem o português não com o objetivo de eliminar suas próprias línguas, que continuam com a função de comunicação interna, mas para se comunicar para fora.
Quarta fake news: os índios pertencem ao passado. Os índios estão encravados no nosso passado, mas integram o hoje, e não é possível a gente imaginar o Brasil no futuro sem a riqueza das culturas indígenas. Se isso, por acaso, ocorresse, o país ficaria muito pobre e muito feio, igual ao bairro Amarelo, um conjunto habitacional localizado em Hellesdorf, na ex-Berlim Oriental, na Alemanha. Em 1985, o Governo construiu um conjunto habitacional tipo BNH, em Berlim. Eram blocos de 5 a 6 andares, uns caixotões de concreto pré-fabricados, com uma fachada pintada de um amarelo diarreia. Cerca de dez mil pessoas de baixa classe média moravam lá, em 3.200 apartamentos. Os moradores achavam o lugar horrível. Quando caiu o muro de Berlim, em 1989, a cidade passou por um processo de reforma urbana. O Instituto de Urbanismo de Berlim colocou 50 milhões de dólares para dar uma melhorada no bairro. Consultaram os moradores: “Queremos mudar o bairro, mas queremos saber com que cara vocês querem que ele fique”. Os moradores discutiram e concluíram: “Nós queremos que nosso bairro tenha a cara da América Latina, que é bonita e alegre”. Foi feita a licitação, e se apresentaram mais de 50 escritórios de arquitetura. Ganhou um escritório de brasileiro de São Paulo. Aí os arquitetos foram conversar com os moradores, e eles pediram: “Nós queremos que sejam colocados azulejos com arte indígena contemporânea”. Em 1998, essas estampas, transformadas em azulejos, foram inauguradas nas fachadas dos blocos do Bairro Amarelo, tornando-o mais belo e habitável. A aldeia Bodoquena ganhou, por esse trabalho civilizatório, 20 mil marcos alemães e mais passagens e estadas das índias, artistas Kadiweu, que estiveram presentes na festa de inauguração. Hoje, no Brasil, existem 1.693.535 pessoas indígenas (IBGE Censo 2022, pertencentes a 305 etnias), povos indígenas, quase todos eles produzindo artes gráficas.
Quinta fake news: o brasileiro não é índio. O brasileiro não considera a existência do índígena na formação de sua identidade. Há 500 anos, não existia, no planeta Terra, um povo denominado brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco séculos, com a contribuição de três grandes matrizes: europeias, além das matrizes africanas, da qual participaram diferentes povos, como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussá, bantos e tantos outros. E há as matrizes indígenas, formadas por povos de variadas famílias linguísticas, como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros; depois, as migrações de outros povos, como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro é se identificar apenas com o vencedor – a matriz europeia. O índigena não foi “’eliminado” nem “assimilado”. Hoje, além desses de mais de 220 povos viverem falando suas línguas, mantendo organizações sócio-politicas próprias, o índígena permanece vivo dentro de cada um de nós. Olha a Vera Fischer: loura, de olhos azuis, filha de uma migração recente. Não seria exagerado afirmar que a Vera Fischer é tão índígena quanto uma cabocla vendedora de tacacá e tão negona quanto uma passista da escola de samba. Isso porque a indianidade e a negritude não são marcadas pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz. Não é uma questão genética, é uma questão cultural, histórica. Na hora em que aquele descendente de um alemão lá de Santa Catarina, louro e do olho azul, começar a rir, como é que ele vai rir? Ele vai sentir medo de quê? Quando fala uma variedade regional do português, de onde veio essa forma de falar? É aí que afloram as heranças culturais, as marcas indígenas e negras, ao lado das europeias.
Desde 1992, tenho feito visitas em três aldeias na serra da Bocaina, em Angra dos Reis, e duas em Paraty. Os Guarani foram considerados por estudiosos como “os teólogos da América” devido à sua religiosidade. A colheita da roça pode ser motivo para rezas e danças rituais. Nas atuais aldeias do Rio, a reza ou porahêi é realizada todas as noites, durante os 365 dias do ano. Não conheço nenhum grupo dentro da população brasileira que reze mais do que os Guarani. Acho que eles rezam mais do que todos os bispos reunidos numa assembleia-geral da CNBB. Hoje vivem no Brasil mais de 300 etnias, falando 274 línguas autodeclaradas, que são reduzidas a 180 de acordo com critérios linguísticos. Cada povo tem sua língua, sua religião, sua arte, sua ciência, sua dinâmica histórica. Já em 1640, o padre Acuña, um jesuíta que acompanhou a expedição de descida de Pedro Teixeira, escreve que, só no baixo Amazonas, existiam pelo menos 150 povos falando 150 línguas diferentes. No território que é hoje o Brasil, eram faladas mais de 1.300 línguas. É o caso da língua dos Tupinambá, do tronco Tupi, e da língua dos Goitaká, do tronco Macro-Jê. Eram povos vizinhos no Rio de Janeiro, cujas línguas não permitiam uma comunicação entre eles.
José Ribamar Bessa Freire é professor, jornalista, historiador e antropólogo, dedicado à causa indígena, um dos mais importantes especialistas sobre o tema no Brasil. Ex-professor na Pós-Graduação da UNIRIO em Memória Social e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas na UERJ. É autor e organizador de mais de 20 livros, incluindo “Rio babel: a história das línguas na Amazônia”. Bessa foi professor da Universidade do Amazonas de 1977 a 1986 e fundador e ex-editor do Porantim, jornal do CIMI – Conselho Indigenista Missionário.