Nos filmes de Hollywood e nas séries da Netflix, estamos acostumados a ver cenas em que a vítima identifica o criminoso através de um vidro, observando suspeitos que apresentam características físicas semelhantes. A realidade nas delegacias do Rio, no entanto, é bem diferente e menos justa. Aqui, o método empregado normalmente se resume ao uso de um álbum de fotos de qualidade duvidosa e muitas vezes extraídas de redes sociais.
Imagine só: a foto de um jovem negro sem antecedentes criminais pode ser retirada do Instagram e colocada em um álbum de delegacia do Rio, e, com um simples apontar de dedo de uma vítima confusa ou pressionada, sua liberdade é roubada. Isso não é justiça, é um erro grave que arruína vidas para sempre. Prova disso é que mais de 90 pessoas inocentes foram presas no Estado do RJ, só no governo de Cláudio Castro, com base exclusivamente em reconhecimento fotográfico. Nesse sentido, apresentei uma denúncia na Organização das Nações Unidas (ONU) contra a recorrência dessas injustiças em nosso sistema judicial, questão que tem chamado a atenção do mundo para o Brasil. Depois de muito trabalho na formulação de relatórios, depoimento de testemunhas e vítimas, atualização dos dados, conseguimos uma vitória: a Organização das Nações Unidas acaba de agendar o julgamento de denúncia contra o governo do Estado do Rio de Janeiro. A sessão ocorrerá em Genebra, entre os dias 12 e 16 de agosto.
Como advogado e representante na ONU, participarei dessa sessão, assumindo a responsabilidade de atuar no processo que tramita no Conselho. A denúncia se baseou em relatórios da Defensoria Pública do Rio, que revelaram esse quadro alarmante: dos 242 processos, os réus foram absolvidos em 30% dos casos por causa da identificação errada da foto. Entre eles, a prisão de mais de 80% (54 pessoas) foi preventiva decretada, e há quem tenha passado quase seis anos encarcerado até a absolvição.
Entre os casos emblemáticos, está a prisão do violoncelista Luiz Carlos Justino, 24, que se tornou um dos símbolos trágicos dessa falha do sistema judicial. Residente na comunidade da Grota, em Niterói, Justino foi injustamente acusado e preso por um crime de assalto à mão armada em 2017, sem nenhuma prova concreta além do reconhecimento fotográfico por parte da vítima. Outro caso foi o Laudei, preso por furto de carro sem que sequer soubesse dirigir — também um erro na identificação de uma foto mostrada na delegacia. Em comum, em todos esses casos, as vítimas eram jovens, moradores de favelas, cujas vidas e de suas famílias foram dramaticamente impactadas por essa prática danosa.
Ao abordar esses casos, enfatizo a importância do reconhecimento, pelo Brasil, da autoridade do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A ratificação dos protocolos do pacto pelos direitos civis da ONU pelo Congresso Nacional brasileiro não apenas legitima a atuação desse Conselho em avaliar casos de violações de direitos humanos, mas também estabelece o dever do Brasil e do estado do Rio de adotar novas políticas de justiça. Precisamos aprimorar nossas leis e procedimentos de investigação policial, usando recursos tecnológicos que auxiliem na identificação dos criminosos. A legislação deveria obrigar, por exemplo, que o procedimento de identificação do suspeito pela vítima fosse gravado. Além disso, as forças policiais e o Ministério Público deveriam seguir o que os tribunais superiores já decidiram por diversas vezes: jamais se deve prender alguém, tendo o reconhecimento fotográfico como única prova.
Existe a expressão popular “mal na foto”, usada para dizer que “algo não deu certo” ou que “pegou mal” e que literalmente pode ser utilizada nessa prática danosa de identificar criminosos através da identificação de fotos. Com o julgamento agendado pela ONU, daremos um passo para reconhecer e corrigir essas falhas, porque a justiça deve ser cega, mas nunca para confundir uma foto que leve um inocente para a prisão.
Foto: Ciro de Hollanda
Raphael Costa é advogado, coordenador-geral no Ministério da Justiça, ex-secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de Niterói. Atualmente é assessor jurídico no Conselho de Direitos Humanos da ONU.