Este ano marca 60 anos do Golpe Militar de 1964. Muito tem sido falado e publicado sobre esse sombrio episódio da política nacional e que me fez lembrar da “Campanha da Legalidade” — movimento ocorrido em 1961, no Rio Grande do Sul, liderado pelo meu avô Leonel Brizola, então governador do Estado, contra os militares que tentavam impedir a posse do meu tio e vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Brizola assumiu a defesa da sucessão de acordo com a Constituição e mobilizou a população gaúcha. Esse movimento pela legalidade, que completará 63 anos no próximo dia 27 de agosto, faz parte da História do Brasil e também da minha história familiar.
No entanto, o golpe militar de 1964 nunca era mencionado em minha casa – era uma espécie de tabu porque familiares, tanto do lado paterno quanto materno, viveram momentos tensos. Prova disso é que a primeira vez que ouvi falar sobre a Campanha da Legalidade, eu tinha 11 anos. Morava no Rio e fui passar férias em Porto Alegre, levando um dever escolar: escrever sobre uma passagem da História do Brasil. Sem ter nenhuma ideia em vista e sem inspiração, lá consultei a minha avó materna, Dóris Daudt, que sugeriu: “A Campanha da Legalidade, o movimento que teu avô Brizola liderou”. Fiquei tão surpresa e curiosa que passei a pesquisar por dias em muitos livros, revistas e enciclopédias (na época, não existia o Google). E quanto mais eu pesquisava, mais eu me interessava e me impressionava com aqueles acontecimentos, como se estivesse lendo um romance épico, só que, nesse caso, os personagens eram íntimos para mim.
Embora meu avô Leonel Brizola tenha liderado a Campanha da Legalidade e seja uma pessoa pública bastante conhecida, poucos sabem que a Campanha chegou à minha família também pelo meu outro avô, materno, o militar Alfredo Daudt, capitão da Aeronáutica, na Base Aérea de Canoas, RS. Ele liderou os 72 sargentos que esvaziaram os pneus dos aviões que iriam bombardear o Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, onde Brizola resistia para fazer valer a posse de seu cunhado João Goulart – eleito democraticamente –, mas que se encontrava em viagem oficial à China e foi acusado de “comunista”. Assim, meu avô Daudt salvou o meu avô Brizola e todos aqueles servidores e soldados que se encontravam dentro do palácio. Minha família paterna e a materna ainda não se conheciam.
Outra familiar presente nesse momento histórico foi minha avó Neusa Goulart Brizola, que resistiu, acuada, na ala residencial do palácio, junto com o meu pai, João Vicente, 8 anos, e os meus tios João Otávio, 6, e Neusa Maria, 4 – cercada por barricadas, sob a ameaça real de bombardeio, rezando duplamente pela vida do marido, Leonel, e do irmão, a quem chamava carinhosamente de Janguinho. Por dias longe do marido, ela carregava um revólver dentro da bolsa. Alertada de que deveria por segurança sair do palácio com os filhos, minha avó Neusa, uma mulher de coragem, preferiu entregar as crianças aos cuidados da amiga Mila Cauduro e correr todos os riscos, ao lado de Brizola, para defender o irmão.
A arma de Brizola era um microfone, e o seu centro de resistência estava no porão do Piratini, onde improvisou um estúdio e colocou a Rádio Guaíba sob seu controle. Sem dormir e se alimentar direito por dias, ali ele montou uma estação, aos moldes das redes sociais de hoje, e comandou 104 emissoras, que foram entrando na “Cadeia da Legalidade”, formando a mais poderosa rede de comunicação radiofônica desde então existente no país, que reverberava seus discursos 24 horas conclamando os brasileiros a reagir. Para surpresa geral, o povo se encanta com a sua fala, e milhares de pessoas protestaram por todo o Brasil, através das ondas dos rádios, que eram os principais veículos de comunicação dessa época. Também, em Porto Alegre, cerca de 45 mil gaúchos se apresentaram como voluntários e foram para a frente do Palácio Piratini, onde fizeram um cordão de isolamento, levando faixas e cartazes.
Brizola conseguiu a adesão do comandante do III Exército, general Machado Lopes, que passou para o lado legalista. O governador e o general surgiram diante do povo como personagens emblemáticos nessa crise político-militar. O conflito foi contornado com a adoção do Parlamentarismo, sem o apoio de Brizola. Após 13 dias de impasse, Goulart foi empossado presidente. Brizola, não concordando com esse desfecho, preferiu não ir à posse do cunhado em Brasília e se refugiou no Rio Grande do Sul.
Entretanto, era o adiamento de um plano que se concretizou três anos depois, com a deflagração do Golpe Militar de 1964. Brizola até queria de novo liderar a resistência armada, mas, desta vez, não conseguiu.
Meus dois avôs foram exilados e pagaram caro. Brizola foi perseguido cruel e impiedosamente pelos militares e teve que fugir. Viveu no Uruguai, nos Estados Unidos e Portugal, totalizando 15 anos, tendo sido o maior exílio vivido por um político brasileiro. E ao retornar ao País com a Anistia, ele tem um papel central na democratização e na Campanha das Diretas, se elegendo por duas vezes governador do Rio de Janeiro, onde ele tem uma marca muito importante, que foram os 500 Cieps, junto com Darcy Ribeiro, que era vice-governador, e o arquiteto Oscar Niemeyer, que era um projeto revolucionário de educação pública de tempo integral (elas estão abandonadas e não mereciam). Meu avô Brizola sempre fez da educação uma política de Estado, talvez a sua maior marca. Foi uma figura que despertava amor e ódio, em igual proporção; hoje está sendo reverenciado.
Já o capitão Dault, com o regime militar no país, ficou marcado e foi demitido do quadro de oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB). E desde então, a sua mulher, Dóris, passou a receber uma “pensão de viúva” como se morto fosse. Em sequência, os militares cassaram a sua licença técnica de piloto e o proibiram de exercer a profissão. Os tribunais e juntas militares também cassaram as suas medalhas e condecorações. Daudt foi preso, torturado, perdeu o seu patrimônio e foi obrigado a partir para o Uruguai, onde ambas nossas famílias se uniram para sempre.
E se não tivesse tido o golpe?
Passando as folhas desse misto de livro de História e álbum de família, sinto que hoje vivemos em um Estado Democrático de Direito, temos uma das Cartas Constitucionais mais belas do mundo, eleições livres e diretas para o Executivo e o Legislativo e uma democracia em permanente processo de construção e fortalecimento, embora, vez ou outra, ameaçada. Vale a pena lutar.
Juliana Brizola é advogada, mestre em Ciências Criminais, vice-presidente da Internacional Socialista da América Latina e Caribe, Secretária de Relações Internacionais do PDT, ex-vereadora e ex-deputada estadual (PDT-RS), de Porto Alegre, RS. Autora do livro “Meu Avô Leonel – Frases de Leonel Brizola” (com a jornalista Rejane Guerra).