Lembro-me bem da minha surpresa, lá pelo fim dos anos 1990, quando denunciei, pela primeira vez, o despejo de esgotos doméstico e industrial junto ao ponto de captação da estação de tratamento de água do Guandu. Considerei que, imediatamente, as autoridades desavisadas, que desconheciam aquela estapafúrdia situação, tomariam medidas imediatas — afinal, a saúde de milhões de moradores da Região Metropolitana do Rio de Janeiro estaria, potencialmente, correndo perigo.
Que nada!
Em 2007, em mais uma denúncia, junto com equipe do jornal O Globo, abordando aquela situação aterradora, o presidente da estatal informou que havia um projeto e que logo o problema seria equacionado.
Que nada!
Foram necessárias duas “crises da geosmina” para que alguém se mobilizasse; somente com o novo marco do saneamento, é que aparentemente as coisas mudaram. Destaco que, há algum tempo, não sobrevoo a área, portanto não sei bem como anda a situação por lá.
Fato é que, desde minha primeira denúncia e alguma ação concreta, passaram-se 22 anos. Durante esse tempo, não faltaram eventos megalomaníacos que consumiram bilhões de reais, enquanto o ponto de captação de água da valorosa, milagrosa estação de tratamento de água do Guandu era “regada” diariamente por uma dose monstruosa de esgotos doméstico e industrial.
Tudo aparentemente “normal”.
Nessas décadas do projeto “OlhoVerde”, pude acompanhar o definhar das bacias hidrográficas da Região Metropolitana, algumas já consolidadas como valas sem vida de esgoto e lixo, e outras, aos poucos, se transformando também em novas valas.
É como se não dependêssemos de água de boa qualidade, confiando cegamente nas milagrosas estações de tratamento de água. Eu disse ÁGUA, como se tivessem a capacidade mágica de também funcionarem como estações de tratamento de esgoto ou talvez de coisas bem piores.
Vejo a bacia do rio Iguaçu, de forma recorrente, não só tomada por esgoto como também por óleo escorrendo livre, leve e solto para as águas da Baía de Guanabara e para seus manguezais — tudo de forma corriqueira e sistematicamente denunciado.
Vejo a bacia do rio Estrela, entre os municípios de Duque de Caxias e Magé, progressivamente sendo enforcada pelo crescimento urbano desordenado transformando mais um importante rio da bacia hidrográfica da Baía de Guanabara em vala morta onde, não raro, a tentativa de roubo de óleo dos dutos tem produzido acidentes lambuzando de óleo os manguezais locais.
Vejo a bacia do rio Guaxindiba dentro da maior área de manguezal do estado do Rio de Janeiro, recebendo de tudo que se possa imaginar dos municípios que cresceram sem ordenação do solo e muito menos com infraestrutura operacional de saneamento nas últimas cinco décadas.
Temos uma cultura voltada exclusivamente para o “usar até acabar”; a degradação é amplamente aceita pela sociedade desde que gere “algum”, independentemente da relação custo/benefício. Na maioria das vezes, o lucro se concentra nas mãos dos delinquentes ambientais, sendo que o custo reverte para a mesma sociedade, dotada de resiliência patológica. Isso é aceitar o inaceitável.
Agora, estamos com o caso de alguns milhões de cidadãos sem água há não sei quantos dias, penando por conta do lançamento de produto tóxico na bacia hidrográfica que abastece parte da Região Metropolitana.
Algum espanto? Nenhum! Seria espantoso se já soubéssemos quem praticou esse ato ambiental hediondo, e os delinquentes devidamente presos, como estabelece a lei. Melhor do que isso, só se nossas bacias hidrográficas estivessem de fato protegidas não apenas por leis, mas principalmente por ações concretas, por exemplo, isoladas de quaisquer potenciais fontes de poluição.
É complicado? É! Mas pior é ver milhões de moradores sem água, com a economia e a educação paralisadas.
Não podemos, em hipótese alguma, continuar gerenciando nossas bacias hidrográficas — principalmente as estratégicas, como aquelas que têm por função o abastecimento de água — da forma como tem sido nos últimos cem anos.
Não podemos mais tolerar o crescimento urbano desordenado (tema evitado pela maioria absoluta das prefeituras) tampouco a criação de polos industriais ou dutos transportando seja o que for próximo dessas bacias. Simplesmente não dá!
Vai dar trabalho? Vai. Mas não é possível continuarmos reféns de acidentes graves, como o último, que afetou a captação de água da bacia do rio Guandu. Até hoje, passados alguns meses, não se sabe quem o gerou.
Estamos em pleno século XXI e, à exceção das melhorias em progresso referentes ao novo marco do saneamento — que vão demorar para atacar estruturalmente décadas de completo descaso com o tema —, continuamos à mercê da sanha dos delinquentes ambientais. Sem medo de punição, eles continuam deitando e rolando, prejudicando a saúde e a economia da já mais do que sacrificada Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Em resumo, precisamos identificar e punir exemplarmente, dentro do que estabelece a lei, tanto os delinquentes PJ quanto, principalmente, PF — isso nos elevaria ao estágio de inteligentes!
No entanto, precisamos de muito mais: associar a proteção dos locais das bacias estratégicas relacionadas com o abastecimento de água, por meio da criação de unidades conservação que as protejam fisicamente, com a remoção de moradias, dutos e indústrias que possam interferir na qualidade de suas águas, monitorando-as em vários trechos dos rios. Dessa forma, além de inteligentes, seríamos, finalmente, sábios.
Não há mais espaço nem tempo para “correr atrás do prejuízo”. É preciso evitá-lo a todo o custo; para isso, não faltam instrumentos tecnológicos à disposição.
Contudo, para alcançar esse objetivo, precisamos mudar nossa cultura de “usar até acabar” ou da “porteira arrombada”. Aí é que está o nó!
Se não desatar esse tal nó, não tenho dúvida de que essa cultura nefasta causará, cada vez mais, altos danos tanto na saúde quanto na economia.