Quando criança, morador de Copacabana, eu vibrava de uma janela para a outra, vendo o cruzamento das ruas Figueiredo de Magalhães com Barata Ribeiro durante as intensas chuvas da nossa cidade, que transformavam aquelas vias em caudalosos rios pútridos, tomados pelo lixo jogado às ruas. Eu não imaginava, nem de longe, que, anos depois, na vida adulta e profissional, eu militaria no olho do furacão de uma cidade que parece não entender sua vulnerabilidade e dependência em relação à água, elemento que dá e pode tirar a vida.
Corta para 2024: previsão de 500mm de chuva. Não é chuva, é dilúvio em escalas bíblicas!
Anos atrás, cheguei ao estado da Flórida justamente quando um dos furacões, tido como o mais destruidor daquele estado, estava para chegar. Pude acompanhar toda a mobilização da sociedade bem como do poder público e das empresas de serviços, todos, sem exceção, mobilizados em estado máximo.
Mensagens permanentes, nas TVs e nos celulares, davam orientações de como se portar diante da previsão da catástrofe.
No litoral, foi uma tragédia com perdas materiais expressivas, além de algumas mortes; felizmente, onde eu estava, ao contrário das previsões, o furacão se desviou.
Sem dúvida, foi uma experiência bastante intensa, mas, em nenhum momento, me senti em perigo, graças às medidas sistêmicas preventivas que foram tomadas.
Agora acompanho as previsões dos órgãos técnicos a respeito de chuvas torrenciais, que potencialmente possam nocautear a Região Metropolitana do Rio. Neste momento em que escrevo, três pessoas morreram em Petrópolis, na Região Serrana, e o alerta está em estágio 2 de um total de 5, entre outras áreas do estado. Portanto, informados pelos órgãos técnicos da probabilidade, indicados pelos modelos matemáticos, prefeitos e o governador tomaram as medidas necessárias diante de uma potencial chuva torrencial, que eu diria bíblica, pois 500 mm de chuva traduzem-se em 500 litros de água por metro quadrado, logo é água demais para uma área tão pequena, mesmo com cobertura vegetal.
Neste momento, dia 22 de março, a chuva tem se mostrado “modesta”, mas com os modelos matemáticos ainda convergindo para a ameaça concreta de chuvas torrenciais.
Ao contrário de apoiarmos de forma unânime as medidas tomadas, tanto de advertência como de mobilização preventiva, ouço nas ruas e leio nas mídias sociais comentários e mensagens de gozação e escárnio com as ações de contenção.
Sinto uma profunda tristeza com esse tipo de situação, visto que traduz uma das características culturais mais perniciosas da cultura local: o horror à prevenção, palavra tida como uma blasfêmia, exagero, alarmismo, catastrofismo “de quem quer aparecer”. Aliás, já fui muitas vezes vítima de minhas postagens e matérias preventivas que acabaram se materializando, como no caso das chuvas de 2019 nas comunidades de Muzema e Vidigal; na primeira, 24 pessoas morreram em decorrência do desabamento de uma construção irregular depois das fortes chuvas. Enquanto eu sobrevoava o município, alertando para os perigos iminentes, as autoridades da época me desqualificavam tecnicamente. Típico.
O mesmo aconteceu em 1996, durante as grandes chuvas que causaram o transbordamento da lagoa Rodrigo de Freitas. Apenas depois do meu alerta, as autoridades se mexeram para desentupir o assoreado canal do Jardim de Alah.
Somos um lugar onde as tragédias sociais e ambientais são produzidas em série, onde, em quase 100% dos casos, ninguém é punido, a não ser os que perdem a vida e bens materiais.
É uma sociedade que culturalmente se alimenta de tragédias anunciadas, tanto nas urnas como nos rios e encostas transformadas em lixões, fonte de assoreamentos, inundações e desabamentos com mortes que acabam tomando conta dos noticiários por algum tempo, com cobranças até a próxima tragédia, e assim por todo o sempre…
Eu acompanho isso há décadas, e quando algo muda para melhor — com a advertência de quem entende e a tomada de medidas preventivas do setor público responsável —, a resposta de parte da sociedade é de gozação. Trágico!
Para quem não sabe, destaca-se que modelos matemáticos são interpretações simplificadas da complexa interligação de inúmeros fatores que produzem o que chamamos de clima, em que nem os mais poderosos computadores têm a capacidade de acertar em 100%, a todo o momento, o que é previsto, isto é, uma forte possibilidade de acontecer; consequentemente, é melhor estar prevenido do que morto.
O desejo continua sendo que a chuva tenha um comportamento mais ameno do que o previsto, mas as medidas preventivas precisam continuar até a próxima segunda-feira (25/03).
Ninguém faz seguro do carro ou da saúde, pensando que um dia irá bater, ser roubado ou internado; mesmo assim, o indicado é se prevenir.
Infelizmente, esse raciocínio básico ainda não criou raízes em nossa sociedade, mal-acostumada com um comportamento, geralmente “amigável”, do tempo.
O clima mudou e está para cobrar dos incautos décadas de descaso.
Reitero: melhor prevenido do que morto!
Parabéns aos institutos de meteorologia e aos prefeitos e ao governador, pois não há mais espaço para amadores na seara ambiental.
Enquanto finalizo este desabafo, ouço a intensidade da chuva aumentar…
Cronologia das piores enchentes nas últimas décadas:
— em 1966, ocorreu a maior de todas as enchentes, quando 250 pessoas morreram e mais de 50 mil ficaram desabrigadas depois de cinco dias de temporal;
— em 1988, bairros inteiros foram alagados, e o caos na capital deixou mais de 300 mortos em duas semanas;
— em 1996, nova tragédia: as tempestades causaram deslizamentos e alagamentos que mataram 200 pessoas, deixaram mais de 30 mil desabrigados, e a lagoa Rodrigo de Freitas transbordou — isso, numa época em que os extremos climáticos ainda eram apenas teoria;
— as chuvas “atípicas” continuaram: em 2010, provocaram quase 100 mortes no Rio. No desabamento no Morro do Bumba, em Niterói, 48 pessoas morreram e 3 mil ficaram desabrigadas;
— em 2011, a maior tragédia climática do Rio deixou quase mil mortos na Região Serrana; deslizamentos e alagamentos mataram 918 pessoas e deixaram 30 mil desalojados, além de 99 desaparecidos nos municípios de Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e Sumidouro;
— em abril de 2019, o aguaceiro deixou o bairro do Jardim Botânico quase submerso depois das tubulações arrebentadas com água do rio dos Macacos jorrando, e várias casas destruídas, além de 10 mortos;
— em 2020, a chuva causou o deslizamento de uma encosta, destruiu uma casa e dois prédios, provocando a morte de 119 pessoas no cruzamento entre as ruas Belisário Távora e General Glicério, em Laranjeiras.
Foto da capa: Douglas de Paulo