Ando um tanto pensativa sobre a definição de “clássico” e o quanto esse adjetivo tem sido usado em vão. Segundo o dicionário Oxford, “clássico” é um adjetivo “relativo à literatura, às artes ou à cultura da Antiguidade”, definição que se aplica como uma luva a um dos clássicos celebrados pela coluna de hoje: o gastrônomo Apicius, mas não aquele nascido no século I, autor do livro “De re conquinaria”, a principal fonte sobre a história da alimentação romana, e sim ao Apicius carioca, maior cronista de gastronomia que esta cidade já viu.
Apicius (ou Roberto Marinho de Azevedo Neto) escreveu no JB, por mais de 30 anos, as melhores crônicas sobre gastronomia do Rio. Uma das características mais divertidas do seu texto era a presença dos amigos nas histórias, que, assim como ele, preservavam suas privacidades por meio de codinomes.
Espero que Robertinho me perdoe de onde estiver, mas hoje é dia de revelar o nome de um casal presente em muitos dos seus textos: o Sr. e a Sra. A.
O Sr. e a Sra. A são meus pais, Eduardo e Carmen Alvares. Pela amizade deles com Apicius, foi que tive o privilégio de, por muitos anos, ouvir o telefone tocar todo dia 12 de novembro e, do outro lado da linha, uma voz lenta e arrastada, que o pessoal to TikTok colocaria na velocidade 2 nos seus aparelhos, diria:
— Izabeeeeel Carolinaaaaaa?
— Sim.
— Aqui é Robertinho.
— Oi, Robertinho, tudo bem?
— Estou ligando para te desejar um feliz aniversário e muitas felicidades.
— Obrigada, Robertinho, saudades!
— Sim, saudades. Seu pai está aí?
— Tá, sim. Vou chamar.
Um clássico.
Criticar o trabalho dos outros pode ser um negócio perigoso. Ao contrário de Robertinho, que se protegeu por anos com um codinome, eu tô aqui totalmente exposta. Então, pra não começar a carreira levando ovada na rua, resolvi não arriscar e escolhi um”clássico” carioca para celebrar esse novo momento da minha carreira.
Segui à risca o conselho de Apicius: “O melhor é procurar um restaurante que esteja cheio: é uma referência universal. Se ele está cheio, em geral, é bom. Mas tem que estar cheio de pessoas do lugar, e não de turistas.” Então, lá fomos nós comemorar no Bar Lagoa.
Sentamos na varanda para aproveitar aquele “clássico” ventinho da Lagoa. A gritaria do salão é tão presente quanto o sabor especial do chope superbem tirado, graças à serpentina linda e centenária. Ufa! Nada mudou, nem mesmo o excelente atendimento do Paiva, que carrega, em seu crachá, o ano em que entrou no restaurante: 1982.
E agora vamos ao que interessa. Compartilho com vocês, o pedido “clássico” da família A:
Para petiscar, mix de salsichão branco e vermelho e batata prussiana. Gosto de fazer uma espécie de canapé, usando a batata de base e colocando a fatia de salsichão por cima, com uma gota de mostarda preta.
Já os pratos principais favoritos da família são: novamente o salsichão, desta vez, cozido e acompanhado da melhor e mais clássica salada de batata do Rio, milanesa crocante e finíssima e o kassler, que o papai sempre pede para vir malpassado, mas o pedido é sempre ignorado, como um sinal para deixar seus “clássicos” quietos.
Acabamos não pedindo sobremesa dessa vez, pois já estava tarde, mas fica a nossa escolha clássica: apfelstrudel com creme fresco.
Paiva traz a conta e nos avisa que agora o Bar Lagoa abriu sua primeira filial: um quiosque na praia de Ipanema. Costumo torcer o nariz para esse tipo de novidade, mas, como o restaurante carrega desde sempre a vantagem de não ter uma figura por trás dos seus pratos, acredito que o padrão da comida, talvez por falta de ego, será mantido.
O Bar Lagoa é pseudônimo de muitos cozinheiros, o que pode ser a resposta da indagação feita por Luciana Fróes em uma de suas colunas. Fróes pergunta “quem é o chef do Bar Lagoa?” Eu não tenho a resposta, apesar de ser do métier, mas acredito que os chefs são muitos e também nenhum, o que ajuda a criar um “clássico”, maior que qualquer indivíduo. O mesmo vale para o outro protagonista deste texto, o Apicius. Apicius não é só Robertinho, é também Sr. e Sra. A., é Mme. K e tantos outros personagens que circundaram sua vida.
Antes de entregar este texto, percebo que usei a palavra “clássico” oito vezes, o que pode ser um sinal de falta de vocabulário ou a certeza de que não há palavra melhor para definir ícones que são eternizados pela influência que causam, pela capacidade de resgatar um momento e nos transportar para onde desejamos. Ou será que há?
Por hoje, a única pergunta a que consigo responder é: “Quem é o chef de todos os gourmets?” Resposta: Apicius.
Ilustração: Izabel Alvares