No filme “Anatomia de uma queda”, de Justine Triet, a palavra queda é polissêmica, de forma que múltiplos sentidos se superpõem numa tessitura intrincada. Antes de tudo, é a queda de Samuel do andar superior de sua casa, que perpassa a narrativa fílmica, provocando a indagação crucial se foi um assassinato perpetrado por sua mulher ou um acidente. Queda “material”, portanto, regulada por razões éticas. Em seguida, a queda remete ao “fracasso” de Samuel como escritor, num contraponto significativo do “sucesso” da esposa como escritora. Esse fracasso se alinhava ainda com a queda na relação do casal, marcada que é por acusações e cobranças recíprocas estridentes. Impõe-se ainda a queda da deficiência visual do filho, em que a mãe responsabiliza o pai pelo incidente e pelo descuido. Portanto, na sua diversidade, a queda é metaforizada em múltiplas dimensões, o que confere a ela a condição “ficcional”.
A ficção é o que modula e costura a narrativa, de maneira que o julgamento jurídico assume uma perspectiva ficcional. É preciso evocar que, no cinema norte-americano, as narrativas do julgamento são corriqueiras e naturalizadas, de forma que a circunscrição entre crime e castigo estabelece uma veracidade material ao crime, numa ordem social punitivista, na qual tudo converge para o tribunal. Não é o que ocorre nas filmografias europeia e francesa, em que a materialidade da verdade criminal é sempre relativa e discutível. Com efeito, no filme de Triet, o julgamento é da ordem de ficção, pois, como enuncia o advogado de defesa, o que menos importa num julgamento é a veracidade do evento, mas o que o júri vai acreditar como “versão”. Enfim, nesse contexto, a verdade é da ordem de ficção, como diria Bentham e Lacan, assim como Pirandelo, segundo o qual, o “parecer” se impõe como versão em face da materialidade do ser.
Além disso, a ficcionalidade da narrativa é temperada ainda pela “confusão de línguas” (Ferenczi), pois, como Babel, o filme é falado em inglês e francês, com a duplicidade linguística inscrevendo-se em diversos diálogos e se apresentando num cenário gelado da montanha mágica de Grenoble. O coeficiente de incerteza na narrativa se incrementa ainda, já que o filho (cego) é a única testemunha do que ocorre, não obstante evitar “escutar e ver” os frequentes confrontos violentos entre os pais, tais como os da brancura da neve e a obscuridade dos eventos.
Em consequência, é preciso passar o escalpelo e o bisturi, para fragmentar a materialidade dos eventos, para possibilitar que o invisível se faça visível, para promover fendas e destacar camadas sucessivas no bloco concreto e unívoco, para que a anatomia do acontecimento possa, enfim, se realizar. No entanto, a indeterminação da ficção se impõe, pois, mesmo sendo absolvida, a mulher não se sente aliviada já que, entre as tramas invisíveis, maculam a evidência do crime na sua materialidade, na medida em que a culpa borra a evidência do júri, impondo finalmente a ausência de transparência. O psicanalista também se transforma em personagem ficcional, pois se evapora da condição de analista ao se colocar como testemunha de acusação.
De forma inconclusiva, a narrativa impõe aos espectadores o convite para pincelar a história a que assistiram, pois, em tempos pós-modernos, a verdade é da ordem ficcional assim como a vida no mundo da pós-verdade em que vivemos.
Joel Birman, psicanalista e professor da UFRJ. Membro do Espaço Brasileiro de Psicanálise. Tem vários livros publicados no Brasil e no exterior e foi vencedor de três prêmios Jabuti.