Quando Eduardo Barata (produtor de teatro) me convidou para dirigir um musical sobre Djavan, fiquei inicialmente surpresa porque meu trabalho não se insere muito na linha de musicais. Mas, depois de colocar isso e ele responder que desejava algo diferente mesmo, me animei com o desafio de dirigir meu primeiro musical. Comecei, então a estudar toda a obra do compositor.
Logo me sintonizei com suas emoções introspectivas e sonoridades complexas, que endereçaram meu foco de atenção para a sua poética. Suas letras metafóricas e aparente incoerência figurativa, que voluntariamente colocam em suspensão os entendimentos imediatos, seja do “tema”, seja mesmo de uma frase, me indicaram a possibilidade de nos afastarmos da primazia dos fatos. A opção por uma cena de caráter mais sensorial tomou corpo, afirmando a ruptura com o enredo factual, o afastamento de uma cronologia linear e a ênfase em paisagens afetivas.
No tratamento dramatúrgico, Mauro Ferreira (crítico musical) e eu decidimos ter como texto cênico apenas as letras de Djavan, conjugadas de diferentes maneiras, ordenadas em um desenho circular, como ciclos de amor que se repetem com variações. E nelas, entrelacei o corpo — corpo-palavra, como encarnações sutis das dinâmicas do amor e da natureza, sem dúvida, os dois grandes temas da obra de Djavan.
Em várias entrevistas, o compositor chama atenção para sua fascinação pela água. Diz ele que, talvez, por ter nascido “numa cidade em que a água é o ponto de referência” (Maceió), e acrescenta sua paixão pelas flores, que é de tal ordem a ponto de o levar a construir e cuidar de um grande orquidário em sua própria casa. Pensei que uma ambientação fluida, com elementos que criassem uma paisagem luminosa entre céu e mar, fosse um conceito que poderia aguçar conexões sensoriais.
A longa colaboração com a cenógrafa Natália Lana deu origem a um delicado ambiente de flores suspensas e transparentes de material reciclável que, pela luz e movimento, oferecem paisagens diversas a partir de suas colocações espaciais em relação aos diferentes pontos de vista da plateia. E como corpo-espaço é indissociável pra mim, um diálogo entre as intérpretes, essa paisagem mutável foi se desenvolvendo durante os ensaios. Natalia e eu nos deleitamos com esse novo aspecto da nossa parceria.
Na criação dessa “peça-paisagem” musical, o figurino de Luíza Marcier, que também tem a flor como referência, convida ao salto do cotidiano para o espaço teatral das (ir)realidades afetivas, a luz de Luiz Paulo Nenen acentua a esfera dos sonhos, enquanto as sequências musicais/coreográficas configuram ciclos afetivos não progressivos. Talvez sejam mais a expressão de um tempo espiralado. Esses conjuntos cênicos, em relações mutuamente formativas, apontam uma experiência teatral contemplativa e imersiva, que se quer coletiva e ambiental.
A frase marcante de Djavan “você deságua em mim, e eu, oceano…” me fez desejar um corpo cênico capaz de conjugar o verbo “oceanar”, ou seja, era preciso reunir corpos vocais predispostos a se tornarem espaço profundo de deságue e conexão. O projeto de Eduardo Barata já tinha definido que o elenco seria exclusivamente de mulheres. Como codiretores, buscamos formar um elenco com singularidades vocal e corporal, capaz de se conectar sem se homogeneizar e com potência para instaurar um ambiente propício à fluência entre movimento, som, palavra, cor, beleza e conteúdo, mesmo quando este não se apresenta explícito.
Entendemos que as várias dinâmicas do afeto feminino seriam o amálgama da cena. No desejo de transbordar a perspectiva tradicional sobre as mulheres, desenhamos percursos afetivos para que a plateia possa apreciar a riqueza das corporalidades atuantes na cena, perceber melhor o lugar da mulher nas canções de Djavan, ouvir os ecos da mata e da água, participar dos estados sensoriais e das paisagens cênicas e, assim, djavanear com liberdade por seu universo poético.
Regina Miranda é coreógrafa e analista de Movimento pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies, LIMS NYC, do qual é diretora-geral. Também é diretora artística do Centro Coreográfico do Rio e do Centro LABAN-RJ. Foi convidada para dirigir “Djavanear – um tanto flor, um tanto mar”, no Sesc Copacabana, até dia 4 de fevereiro, de quinta a domingo, às 20h.