Cidade pequena, interior do Paraná, daquelas sem semáforo, onde as crianças brincavam na rua… Cena bucólica dos anos 80. Nasci nesse contexto. Família católica. A igreja, imponente em sua arquitetura simétrica, ficava à vista da janela do meu quarto — era a primeira coisa que eu via de manhã ao abrir a cortina, e a última quanto me deitava na cama pra dormir. No Natal, essa lembrança fica mais saudosa porque os pisca-piscas que hoje vejo nas casas e sacadas do bairro onde moro me lembram aquelas pequenas luzes na fachada da igreja que refletiam no teto do meu quarto, de tão perto que morávamos. Aquele espaço acabou ocupando um lugar enorme na minha vida. Fui coroinha, era assíduo no grupo de jovens, sempre envolvido com teatro, música e estudos. Eu amava estudar a Bíblia e ouvir pessoas mais sabidas das coisas de Deus e da Igreja. Na adolescência, quando passei a ter mais consciência do meu corpo, do meu desejo, do que me atraía, as vivências da igreja começaram a entrar em choque dentro de mim. Eu gostava de meninos, e isso era muito errado.
Fui aprendendo sozinho a colocar esses desejos no armário e jamais me permiti flertar com algum garoto que eu achasse bonito. Enquanto meus amigos estavam aprendendo a beijar ou até mesmo tendo suas primeiras relações sexuais (héteros, é claro!), eu não pude viver nada assim. Paixões escondidas por colegas de escola, misturadas com a culpa de ser quem eu era, passaram a ocupar cada vez mais espaço dentro da cabeça e do coração.
Levei tão a sério meu histórico cristão que, aos 19 anos, me mudei pra São Paulo, a convite de uma banda católica, e passei a trabalhar com música profissionalmente. Me tornei cantor e compositor de música católica. Ganhei prêmios, viajei o Brasil de ponta a ponta, pra fazer shows e palestras, cheguei a cantar pro papa Francisco no Rio, em 2013. Paralelo a esse trabalho, continuei com outra herança do meu pai: fui ser engenheiro civil.
Meu pai era pedreiro, cresci em meio aos canteiros de obra dele. Desde pequeno, eu dizia que queria ser engenheiro. Consegui conciliar muito bem a música e as obras. Construí casas, prédios, bairros e fábricas. E tudo ia aparentemente bem. O armário que construí pra mim desde a infância foi ficando sofisticado. Eu sabia driblar os questionamentos sobre minha sexualidade com destreza. De vez em quando, beijava algumas meninas pra que amigos e colegas de trabalho não desconfiassem de mim. Mas a vida sempre pulsa mais forte, e na mesma proporção em que eu escondia e negava minha sexualidade, crescia o incômodo, a dor e o sofrimento de sufocar a vida que lá no fundo eu queria ter.
Me permiti viver coisas escondidas, uns alívios pra quando o coração doía demais. O primeiro beijo em um homem, os encontros casuais por aplicativos de relacionamento, um relacionamento complicadíssimo com um padre. Tudo discreto e no sigilo. Mas eis que aparece em cena um moreno que me balançou forte. Nos conhecemos no Tinder, e não é que deu certo? Namoramos, passamos a morar juntos, até que nos casamos em meio à pandemia de covid-19. Foi por causa dessa relação que precisei reconsiderar meu armário. Primeiro, pra minha família: contar que o cantor/engenheiro era veado – que desafio! Claro que houve turbulência, mas o voo foi lindo. E depois pra Igreja: contar que o nosso amor era grande demais pra caber dentro de um armário. Mas sou artista, eu não faria isso de um jeito qualquer. Criei um projeto musical e, numa live pelo Instagram, soltei a bomba ao lançar uma música que perguntava “qual a cor do amor? Ele é pra todo mundo, ou exclusivo de alguém?”
Os anos de terapia me prepararam pra chegada desse momento, mas eu não imaginava a repercussão que tomou. Pra muitos, me tornei alvo de críticas, ódio e perseguição; por outro lado, para tantos outros, me tornei sinal de esperança; afinal, “aquele cara que compôs e cantou as canções que marcaram minha vida, ele é gay, e ele fala de Deus. Ele é casado com outro homem e continua cantando sobre Deus”.
Tive eventos cancelados, os convites de eventos sumiram, me tornei assunto complicado para o business musical gospel-católico. No entanto, o mais importante: me tornei ponto de reflexão pra padres e bispos que têm, em suas paróquias e igrejas, pessoas LGBTQIAPN+ que querem viver sua espiritualidade e religiosidade.
Um refresco pra isso são as palavras e ações do papa Francisco. Recentemente, ele ocupou a cena ao autorizar a bênção para a união de casais homoafetivos. Isso equivale ao sacramento do matrimônio? Não. Mas uma coisa é fato: a Igreja Católica e as igrejas cristãs, de forma geral, estão abrindo seus olhos pra essa realidade. Essa simples bênção seria inimaginável até poucos anos atrás. E eu, nisso tudo? Ainda não agendei a bênção do meu casamento com meu marido, mas logo vamos em busca de um padre amigo. Enquanto isso não acontece, lancei meu livro pra responder à pergunta que acompanhou toda a minha vida: “Será que ele é??”
Sim, eu sou; sempre fui. Essa obra quer ajudar a transformar a vergonha em orgulho! Minhas histórias são semelhantes às de tantos, e compartilhar a vida é semear esperança. Espero que o leitor tenha empatia, que calce os meus sapatos pra pisar dentro dessa realidade que fica escondida no armário e no coração de tanta gente que passa por algo parecido. Aos heterossexuais desejo que a leitura desperte a capacidade de diálogo, mudança de mentalidade e comprometimento em ser um aliado das pessoas LGBT+ mais próximas. Às pessoas LGBT+ espero que gere identificação e esperança de vencer qualquer armário e ser sinal de amor, vida e diversidade na sociedade.
Gil Monteiro é de Rio Branco do Sul, no Paraná, e mora em SP. É formado em Engenharia Civil, é cantor e compositor, com três álbuns lançados em sua carreira solo e mais de 24 milhões de visualizações em seu canal no Youtube e mais ou menos 100 mil seguidores em suas redes e plataformas de streaming. Acaba de colocar em pré-venda seu primeiro livro, “Será que ele é?”, com prefácio do ator e amigo Carmo Dalla Vecchia. Ele ficou conhecido em 2022, em junho, mês do Orgulho LGBT+, quando se assumiu gay numa live. Na publicação, ele conta a trajetória na Igreja Católica, sobre a invisibilidade de muitos LGBT+ em espaços religiosos.