Passados poucos dias desde que a Netflix liberou os últimos episódios da “season finale” de “The Crown”, que assisti em duas deitadas no pufe, confesso que não entendo muito bem as recriminações da crítica e de parte do público. Muitos dizem ser, disparada, a pior temporada de todas, que a série se perdeu no contexto da contemporaneidade e que só a rainha se salvou.
Bom, que só a rainha se salvou é uma evidência histórica, e já se pode considerar um grande lucro, sobretudo artístico. E daí vêm as outras estranhezas com esse povo tão crítico: o pessoal diz, por exemplo, que Dodi Al-Fayed, o namorado egípcio de Diana, é retratado como um filhinho de papai. Mas… Dodi Al-Fayed era um filhinho de papai!, jamais tendo conseguido se emancipar e sempre relutante em relação a sair das saias do todo-poderoso Emad Al-Fayed, dono do Ritz.
Dizem também que o referido pai é retratado de um modo caricato, como um chefe de clã cheio de caprichos e excentricidades. Caramba… QUE COISA INESPERADA! Chefes de clã (de todas as origens) em geral são pessoas superserenas, que detestam moldar a vida de seus descendentes e casar os seus filhos com quem consideram os melhores partidos (ponto de ironia).
Como sobrinho-neto de Adolpho Bloch, eu que o diga…
No caso de Emad, seu passado de fascínio e vassalagem pela realeza que admoestou seu país é suficiente para o ótimo perfil desenhado pela série, de um homem torturado que sonha se redimir, unindo seu percurso vitorioso a uma aprovação definitiva da Casa de Windsor.
Mas a crítica que mais me diverte é a de quem diz que Diana está retratada como uma mulher que aparece o tempo todo girando a cabeça na direção do pescoço, um tipo de beijinho-no-ombro “avant la lettre”. Mas… Diana vivia girando a cabeça na direção do pescoço; aliás, para muitos, seu maior charme. Está tudo documentado!
Dizem também que a última temporada está super pró-Charles, chapa-branca desavergonhada do atual rei. Sério? O cara é acusado pelos filhos do diabo, enfrenta contradições cabeludas, se culpa o tempo todo por várias desgraças (embora se defenda, com razão, de ser considerado culpado pela morte de Diana) e se mostra louco para derrubar a mãe do trono, em pleno jubileu da rainha, e quase consegue.
Claro que “The Crown”, desde a penúltima temporada, perdeu muito em substância e conteúdo mais aprofundado. Porém não seria isso mais um espelho da época crescentemente superficial e fragmentada narrada na reta final, e a progressiva decadência, a olhos nus, da família real britânica, junto com a evolução dos costumes na vida cotidiana de seus súditos?
No duro, no duro, as grandes temporadas de “The Crown” são as três primeiras, quando, muito mais do que uma série sobre a rainha e seu clã, era uma obra sobre a história da Inglaterra no contexto europeu e mundial, indo fundo em questões que atravessavam a realeza, mas não só ela.
Os episódios das passagens de Winston Churchill pelo Parlamento — desde Jorge VI até a morte do político, e sua relação com a rainha — são magistrais. Há um em especial que prescinde da família real e trata da concepção de um retrato do primeiro-ministro já em idade avançada, feito pelo pintor Graham Sutherland, que é das melhores dramaturgias já produzidas para televisão.
Apesar de ter lá seus defeitos, essa última temporada traz um excelente “portrait” de Tony Blair; um surpreendente e nada frívolo, delicadamente estudado, percurso da juventude e início da vida adulta de William e Harry; um pungente episódio relatando o teatral encontro de Margareth com a própria morte; ou o périplo final de Diana descrito sem o sensacionalismo que a matou.
E, ainda em se tratando de morte, o arco dos preparativos o funéreo de Elisabeth, que ainda sobreviveria 16 anos. É o prólogo desses 16 anos vindouros que fecha a série, com um diálogo da rainha com seus vários “selfs” (não confundam com selfies). É o prólogo desses 16 anos vindouros que fecha a série, com um diálogo da rainha com seus vários “selfs” (não confundam com “selfies”).
Em suma, eu, que geralmente gosto de implicar com tanta coisa, me vejo agora no papel de não entender a implicância da galera. Lembrando sempre que aqueles que esperam de “The Crown” um Ulisses, de Joyce, precisam se olhar no espelho pelo simples fato de estarem consumindo noites maratonando uma série sobre rainhas, reis, príncipes e princesas.
Arnaldo Bloch é jornalista, escritor, tradutor e roteirista. Autor de “Os irmãos Karamabloch”.