A produtora cultural Tina Tigre, 52, chegou ao Rio, num dos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), vindo de Israel, com outros repatriados, no domingo (15/10). “Não sabia nem para onde ir. Fui forçada a sair de casa, viemos o mais rápido que pudemos depois da ligação da embaixada brasileira, tivemos menos de 30 horas para arrumar tudo e saímos com muito pouco. A sorte é que tinha uma amiga me esperando e um amigo ofereceu o apartamento pra gente ficar”, diz ela, que criou uma vaquinha assim que chegou para conseguir se manter até recomeçar a vida.
Tina é gaúcha, mas morava no Rio antes de se mudar para Haifa, cidade portuária ao norte de Israel, com 270 mil habitantes, em 2021, auge da pandemia, quando os trabalhos de produtora minguaram. Aproveitou que o filho Lourenço, hoje com 22 anos, foi morar no país para ficar por ano numa espécie de intercâmbio judeu, o que aqui seria o equivalente a um treinamento de escoteiro. E levou o outro filho, Theodoro, 23 anos.
“Aprendi um pouco de hebraico, já estava começando a me organizar financeiramente, circulando no meio de produtores, trabalhando como assistente de elenco, com o pessoal da música, estava montando uma mostra de cinema latino-americano com o apoio da prefeitura da Haifa, estava muito empolgada, meus filhos conseguiram empregos de freelancers, teríamos um bom rendimento em outubro e novembro. Fazia muito tempo que eu não estava tão feliz na minha vida, na semana que antecedeu o ataque. Como eu estou num grupo de mensagens de produção, na hora em que o Hamas invadiu a rave, recebi mensagens. Os amigos que fiz na parada gay daqui morreram todos na festa. Quando a Bruna (Valeanu) morreu — ela era conhecida do Lourenço e chegaram a fazer um programa educacional juntos, tinham os mesmos amigos —, eu fui ao enterro e vi meu filho desabando a chorar, ali eu decidi voltar”, conta.
Bruna, a universitária carioca de 24 anos, morava em Israel há 8 anos e foi para um bunker com outros jovens antes de ser assassinada. “Todos os brasileiros se conhecem em Israel, mas, como moramos há 1 hora de Tel Aviv, meus meninos não conviviam muito, mas eram da mesma turma”.
Continua: “Só resolvi vir de vez para o Rio quando cheguei ao cemitério. Meu namorado (o francês David Lyszyk) ficou na fila do estacionamento do cemitério, e nós descemos a pé, de tão cheio. Encontrar brasileiros no cemitério foi um certo alívio, ver pessoas vivas, porque a gente já estava há muito tempo dentro de casa só ouvindo tragédia. Cheguei lá e parecia aquela cena de Manaus na pandemia, um monte de cova aberta, aquele cheiro de terra molhada e cova, cova, cova, desesperador. E não era só o enterro da Bruna; ela foi enterrada ao lado de outra jovem da mesma idade. Ver um monte de mães naquela situação, pra mim, não deu, e ali eu decidi vir embora. No mesmo dia, a filha da minha vizinha, que era soldado, morreu, e eu não fui porque só fiquei sabendo depois. Eu moro num bairro de russos; quando você está em pânico, fala sua língua materna. Fiquei abraçada e não pude falar uma palavra que ela pudesse entender e dor que eu vi no olhar dela, aquele peso parece que passou pra mim. Cheguei em casa e tocou a sirene. Ficamos num bunker com os vizinhos; aquilo não é vida. Resolvi ligar para a Embaixada e pedir a repatriação. Não tenho vergonha de dizer que fiquei com medo, porque não tenho estrutura emocional para lidar nessa situação de guerra, e tudo que eu queria era deixar meus filhos vivos. Larguei tudo, peguei uma mala de doação no vizinho, peguei o que deu, e meu namorado nos levou a Tel Aviv”.
Tina saiu apressada, emprestou o apartamento para uma família que perdeu tudo. “Fiz a vaquinha porque não tenho renda, preciso pagar um lugar para ficar com meus filhos porque não sei como vou recomeçar a minha vida. Tenho que bater de porta em porta e não sei como está o mercado de produção no Rio. Vou ficar nesse apartamento do meu amigo até quinta (19/10); depois vou pra a casa da sogra de uma amiga, onde eu posso ficar mais tempo pra entender como começar, e aqui tudo custa muito caro”, completa.