Neste domingo (15/10), o biólogo Mario Moscatelli comemora 34 anos do “Manguezal da Lagoa”, um dos projetos ambientais mais antigos do Brasil. Abaxo, ele mesmo conta sobre essa história. Entre as comemorações, ele vai soltar caranguejos, além de anunciar a renovação da parceria com a concessionária Águas do Rio, que atua ali há dois anos.
Em 1989 eram 12 mudas de mangue e hoje são mais de 4.500, além do retorno da fauna que havia desaparecido. Em dois anos, foram retirados mais de 2.800 sacos de 200 litros com lixo, e 1.241 mudas de espécies nativas foram plantadas.
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Era uma tarde em que eu tinha de decidir se voltaria ou não a trabalhar no Departamento de Controle Ambiental da Prefeitura de Angra dos Reis, no qual eu, com meus 25 anos, exercia o cargo de chefe do Meio Ambiente do município. Por conta do trabalho desenvolvido nos poucos meses no cargo, eu já colecionava ameaças de todo tipo em virtude das inúmeras licenças cassadas referentes aos loteamentos e marinas cujo objetivo era a supressão de manguezais.
Parei a moto no estacionamento em frente ao Parque da Catacumba e, com uma baita pressão no peito, fui andar nas margens da Lagoa. Foi quando eu “vi o chamado”.
Lá estava uma tainha saltando no espelho d’água e, em seguida, a grama do mangue e as conchas chamadas de unha-de-velho. Por alguns minutos, a pressão da decisão desapareceu, e minha atenção se voltou ao passado da Lagoa, pois provavelmente, naquele lugar tão maltratado — depósito de resíduos e de frequentes mortandades com centenas de toneladas de peixes mortos —, deveria ter tido um manguezal. Foi então que me surgiu uma ideia e, com ela, a decisão de continuar a trabalhar em Angra dos Reis, em defesa dos ecossistemas da Baía de Ilha Grande.
No entanto, o destino, o chamado, a Força, ou como queiram denominar, tinham outros planos para aquele biólogo.
Todos os fins de semana, retornando de Angra dos Reis, eu trazia, de áreas de manguezais degradados, em média, uma dúzia de mudas de mangue-branco, transportadas no meu primeiro “mangue-móvel”: um Chevette Marajó, comprado em parceria com meu pai.
Finalmente, em 1991, acabei tendo de sair de Angra, pois a pressão era grande demais, e eu tinha que dar continuidade à saga.
Felizmente, milhões de metros quadrados de manguezais foram preservados, bem como recuperados a partir daqueles dois anos e meio de ameaças; no entanto, havia já outra batalha a ser iniciada em outro campo: o da Lagoa.
Foram três décadas de embates violentos com aqueles que cobravam, recebiam e prestavam um serviço de péssima qualidade que tornava as águas da Lagoa uma latrina. Não por outro maior motivo estrutural, as mortandades se multiplicavam e eram consagradas pelas autoridades como algo “histórica e naturalmente inevitável”.
Persistente, continuei com os plantios, inicialmente apoiados pelo pai e mãe italianos, que não conheciam os manguezais, mas acreditavam sem nunca ter duvidado da importância que seu filho lhes dava. Produzindo mudas de mangue-vermelho, negro e branco no apartamento do terceiro andar da Rua Figueiredo de Magalhães (Copacabana), os plantios avançavam nas margens da Lagoa.
Abriguei-me nesses manguezais durante a morte de meus pais e durante a minha doença. Nas árvores que eu havia plantado, encontrava apoio e consolo, bem como nas margens da Lagoa, reencontrando o amor da minha vida.
Por conta da persistência e da relutância em abdicar da defesa da vida, arrumei muitos poderosos inimigos, mas também muitos amigos humanos e principalmente não humanos.
Nos dois últimos anos, vi nos manguezais a explosão da biodiversidade na Lagoa.
O que vinha acontecendo aos poucos, nos últimos 32 anos, acelerou de forma explicável desde o recente Marco do Saneamento.
As águas da Lagoa, progressivamente, pararam de receber esgoto, e o sistema de saneamento local começou a ser gerenciado, de fato, depois de décadas de descaso quase que total.
A parceria entre o projeto Manguezal da Lagoa e a concessionária Águas do Rio possibilitou o que era até então inimaginável até 40 anos atrás: águas translúcidas e até mesmo pesca submarina, isto é, melhoria histórica da qualidade das águas locais.
Nesses dois anos, aves, tais como biguatinga, garça-azul, colhereiro, saracura três-potes e bate-bico, esta última indicadora de ambientes saudáveis, até então ausentes, passaram a ter como refúgio permanente ou mesmo temporário os manguezais e as águas transparentes da Lagoa.
Num novo tempo de relação mais harmoniosa com a Lagoa, apoiando as ações da Subprefeitura da Zona Sul e da Fundação Rio-Águas, em menos de quatro meses desde o início do processo de naturalização, o que era um deserto em termos de biodiversidade e um trecho permanentemente inundado da ciclovia transformou-se numa pequena ilha de espécies vegetais de brejo e restinga, que abrigam frangos-d’água, garças-brancas grandes e pequenas, pequenos peixes, como eventualmente Bóris (na foto mais acima), a única capivara atualmente residente.
Para isso, bastaram 34 anos de coragem, persistência, resiliência, competência e uma boa parcela de loucura aliada com aquele “chamado” que, até hoje, permanece em meus olhos, ouvidos e em minhas mãos.
O processo de recuperação do ecossistema da Lagoa é a demonstração pública, explícita de que ecossistemas historicamente degradados pela delinquência ambiental podem ser efetuados com ganhos ambientais e socioeconômicos. Para isso, não é preciso mágica, mas apenas trabalho, trabalho, trabalho e mais trabalho.
Obrigado aos meus pais que lá, naquele início, em 1989, quando tudo era tão improvável e até impossível, nunca duvidaram do seu filho. A Lagoa e as vidas que nela residem agradecem seu apoio àquele jovem biólogo.
A saga continua…