Começar.
Este texto, uma história, um romance, uma newsletter, um poema, um filme, um negócio, um projeto, uma paixão, mas antes: uma vida.
Por que começos são, em geral, tão especiais? A poetisa canadense Anne Carson nos convida, em Bakkai (sem tradução no Brasil), a pensar sobre o primeiro gole num vinho, a primeira página de um romance, o começo de uma ideia, o princípio de uma paixão. Começos têm sua energia própria, tonalidade, cor – os tons de algo prestes a mudar.
E começar a atender por uma nova designação — “mãe” — é uma baita mudança. Luiza — mulher, filha, neta, irmã, jornalista, escritora, poetisa, estudante, pesquisadora — agora também era mãe, esse acontecimento incontornável e talvez o maior de todos os devires por que já passei.
Testemunhar uma vida a partir do momento em que ela começa (seja se considerarmos o início da vida lá dentro da barriga, seja assim que ela emerge à superfície) é emocionante, mas também de uma enorme responsabilidade.
Claro, começos estão fortemente atrelados e associados ao novo, a algum tipo de frescor. No entanto, quando pensamos em “novo”, é comum que a ideia de repetição seja descartada. Estamos destreinados em encontrar o novo naquilo que se repete — diferentemente das crianças.
Adquiri o hábito de sentar no chão ao lado do meu filho João, enquanto ele brinca e, na atenção de observá-lo, sou capaz de adivinhar seu movimento seguinte, de tanto que o admiro (como se constantemente diante de um milagre), de tanto que seus gestos se repetem, aprimorando e aperfeiçoando algum detalhe da brincadeira, encontrando um “novo” de novo e, de novo, numa mesma — e sempre outra — experiência.
Esse é um dos temas sobre que falo no pequeno livro que escrevi para o nascimento de Maria, minha primeira filha, mas segunda pessoa que abriguei no corpo. Outra gravidez, mas a descoberta do “novo” numa mesma experiência, num outro tempo, de uma outra forma. Chamei a plaquete de “De novo, outra vez”. Um exercício a que tenho me desafiado: descobrir outros caminho de enxergar e viver um mesmo acontecimento. Tenho me demorado mais nas coisas, aprofundado um saber, um sentir, um olhar. E descobri que pode ser tudo tão “novo”, mesmo que de novo.
Tive dois filhos num espaço de menos de dois anos, mas, ainda assim, os processos foram tão outros, com tantas nuances… Não é o mesmo rio, não somos nós nunca os mesmos – Heráclito sempre soube.
A maioria das coisas acontece uma vez; deveria ser na segunda, terceira, quarta vez que nos maravilharíamos. Parece que, com a infância, também abandonamos a capacidade de encontrar o “novo” pela repetição. Acontecer duas vezes ou mais significa mais texturas, camadas, a real mágica da coisa; torna o acontecimento mais familiar, íntimo. É naquilo que acontece mais de uma vez que são fundadas lendas, tradições, rituais, descobertas científicas, uma posição favorita, o aprendizado de um poema de cor, a construção de um amor.
No recém-lançado “Raio”, de Eucanaã Ferraz, há um verso de poema em prosa que diz: “E tive pena de usar tão pouco todo o amor e todo o perdão que nos foram entregues no início.”
Ainda temos muito a aprender com as crianças.
Luiza Mussnich nasceu no Rio, em 1991. É jornalista e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. É autora dos livros de poesia “Tudo coisa da nossa cabeça”, “Lágrimas não caem no espaço”, “Para quando faltarem palavras” e “Microscópio”, todos pela Editora 7letras.