As palavras que sempre eu tanto amei, um dia faltaram por aqui. Minha pequena Isadora, que não nos dava sinais de atraso até os 2 anos de idade, empacou quando começou a falar. Os meses seguintes foram de pura angústia para uma mãe ansiosa por ouvir as primeiras frases da primeira filha. Logo comigo? Jornalista, bacharel em Letras, comunicadora por profissão… e uma comunicação falha dentro de casa. A minha missão como repórter de televisão era dar voz às pessoas, e eu não conseguia fazer o mesmo com aquele ser que saiu de dentro da minha barriga. Quanta ironia…
Já estava grávida da minha segunda filha quando comecei a buscar ajuda. Na primeira avaliação da primeira fonoaudióloga que procurei, percebi que havia uma suspeita de apraxia de fala na infância. Nem a pediatra conhecia isso! Passei a noite pesquisando na Internet, com aquela descrição ecoando na cabeça: “distúrbio neurológico que afeta a produção da fala”. Meu Deus, e agora? Será que é muito grave? Será que é só isso? E jamais aquilo seria “só”. É muito! É perguntar, e não escutar uma resposta. É insistir e ouvir o silêncio que insiste em existir. É tentar e se frustrar. Começava nossa longa jornada em um universo desconhecido para o qual eu não havia me preparado.
São horas e horas de terapias diárias. Todo tipo de estimulação é bem-vindo; assim intercalamos uma série de atividades recomendadas pelos médicos e também pelo meu coração. Tem fonoaudióloga, fisioterapeuta, terapeutas ocupacionais, psicólogos, vários profissionais envolvidos pra ajudar nesse desenvolvimento. E tem natação, professores empenhados, cuidadores afetuosos e um monte de alternativas sugeridas e inventadas para preencher uma agenda pautada pelo que há de ser melhor para ela.
Bom, cinco anos já se passaram, muita coisa mudou. Avançamos e regredimos em um ritmo descompassado com nossas expectativas. As poucas palavras daquele dicionário, criado para registrar as evoluções, infelizmente se foram; hoje, a lista de vocabulários já nem existe mais. Isadora é considerada não verbal — como se tivesse desistido daquela intenção inicial de se expressar por meio de sons. Com alguma resistência e um pouco de inconformismo, aceitamos. Uma amiga me lembrou que personagens da Disney são encantadores e não falam, mesmo que digam muito. E é verdade!
Assim faço diariamente o exercício de agir, considerando que há um entendimento completo das coisas ainda que ela não manifeste, ainda que às vezes faça exatamente o que ela quer, e não o que eu pedi — como qualquer criança, não é mesmo? Por isso leva bronca e por isso também que sempre ganha um mimo quando cumpre os combinados. Tentamos dar um reforço positivo para cada iniciativa de falar ou de se comunicar, mesmo que seja do jeito dela. Aliás, o jeito dela é a pura manifestação de vida pulsante, ali, naquela garotinha tão pequena — é a presença da personalidade, das vontades próprias, da individualidade que marca a existência de cada pessoa no mundo.
Isadora é muito esperta: dá um nó em cada adulto distraído, naquela forma convencional de fazer as coisas. Muita gente esquece a sua infinita capacidade de surpreender. A dificuldade de planejamento motor de algumas ações do corpo simplesmente desaparece, dependendo do contexto. E ela planeja direitinho o bote no bolo antes de chegar ao prato, ou desenvolve estratégias magníficas para conseguir chegar aonde quer, mesmo que haja uma grade isolando a piscina ou uma porta trancada ao lado da janela. Ahhh! Ela pula e dá a volta em qualquer obstáculo criado para tentar impedir a ação de qualquer um. Mas Isadora definitivamente não é qualquer um! Aquele rabo de olho vê além de um campo de visão inteiro, e a rapidez de raciocínio dela ultrapassa a velocidade da luz.
Aliás, pena de quem espera qualquer coisa dentro do padrão ou mesmo a partir da ideia de que ela não entende. A criança com apraxia sabe mais do que diz, pensa mais do que fala e entende muito mais do que se imagina. E por ter tanta certeza disso, acreditamos que é nosso dever contribuir com as mais diversas ferramentas para que ela atinja seu maior potencial. Continuamos com todos os recursos possíveis e impossíveis. Buscamos a comunicação alternativa por meio de figuras, tentamos os aplicativos no tablet e seguimos oferecendo terapias de fala para completar todo o leque de possibilidades para essa troca acontecer. Quase morro de orgulho quando um dedinho esticado aponta o desejo mais banal estampado nas paredes da casa, exatamente para ela conseguir se manifestar.
Mas a troca que, de fato, flui e corresponde sem exigir nenhum esforço não acompanha essa dinâmica. É no olhar, no sorriso, no abraço e no toque, que eu sinto a interação mais potente, que eu encontro as respostas mais sinceras, que eu escuto a voz mais poderosa sair do coração. Tem dia que ainda é difícil, tem hora que dói. E tem uma vida inteira nesses intervalos em que não preciso de mais nada além desse amor que acontece todo segundo na nossa maneira particular de dizer “eu estou aqui e eu te amo”. É pura linguagem — a mais sofisticada e perfeita de comunicar o que realmente importa neste mundo.
Gabriela Lian é jornalista, conhecida por trabalhos no “Profissão Repórter”, “Encontro” e no “Mais Você”, na Rede Globo por 17 anos, e mãe de Isadora, de 6 anos, diagnosticada com o transtorno do espectro autista e Apraxia de Fala. Nos dias 22 e 23 de setembro, ela faz palestra na “IX Conferência Nacional sobre Apraxia de Fala na Infância”, em São Paulo, com profissionais de diversas áreas, para tratar de temas sobre o transtorno motor da fala, que atinge duas a cada mil crianças no Brasil e ainda é pouco conhecido.