“Sexo, um assunto popular” é um romance em torno das experiências amorosas de sete amigas que se encontram há alguns anos, semanalmente, para conversar sobre sexo. Nos encontros, elas têm a oportunidade de expor fatos inusitados, vivências incomuns, particularidades relativas aos seus encontros e desencontros com seus mais diversos parceiros sexuais. O que pretendo, antes de tudo, é olhar, sem nenhum constrangimento moral, para uma das dimensões mais decisivas da existência dos seres humanos contemporâneos: a carnalidade em seus muitos desafios, em seus imensos campos de prazer, em seus compassos e descompassos.
Todas as histórias, porém, têm dois elementos que marcam o mesmo modo de construção da própria matéria narrativa. Em primeiro lugar, o caráter inaudito de todas as relações sexuais. Se o mundo contemporâneo escancarou o caráter transgressor e pervertido de toda sexualidade, ou seja, se o pensamento contemporâneo explicitou como dogmática toda e qualquer tentativa de instituir por decreto uma espécie de corpo natural e de sexualidade biologicamente estruturada, puxar o véu de Maia (?) que cobre as relações sexuais é sempre se ver diante de um universo infinito de possibilidades extraordinárias e inocentes, por mais que um neoconservadorismo retrógrado continue sempre, uma vez mais, estigmatizando o corpo e produzindo retificações aviltantes. Ao partir, por exemplo, “da singela presença de dois corpos em meio à estranheza do sexo no universo, sem glamour dos excluídos e da falta de necessidade de qualquer disfarce social entre aqueles que há muito já perderam todas as esperanças”, o livro se embrenha pelas mil delícias e agruras do sexo: gozos em situações inesperadas, taras específicas, predileções insuspeitadas, dentre muitas outras coisas.
No entanto, há também um segundo campo temático. Não há como falar de sexualidade, de relacionamentos entre homens e mulheres, sem se dar conta da absoluta e constante estupidez masculina — esse é um segundo bloco de questões em jogo no romance. Na medida em que os homens se veem submetidos a toda uma suposição nefanda de que a sexualidade estaria centrada na noção de potência e de desempenho, na força e na pujança de suas ereções; na medida em que eles tendem a assumir, nas relações sexuais, uma posição marcadamente hierárquica e desatenta; mais ainda, na medida em que buscam muitas vezes, na relação sexual, a satisfação pura e simples do seu prazer, o que vemos é a constituição de uma rota de colisão contratada, de um espaço marcado pela incapacidade pura e simples de abertura para o outro e de transformação do sexo em campo de aprofundamento e descoberta da verdade dos corpos mortais.
Através de um sem-número de histórias, o leitor se vê diante da possibilidade não apenas de acompanhar sem preconceito as muitas faces do amor em sua conjunção carnal, mas também de descortinar o quanto o sexo, por mais que seja um assunto popular, está embebido em uma série infinita de violências e incompreensões, de suposições e marcas identitárias, o quanto ele é acompanhado pelo mais escancarado preconceito.
Olhar para o preconceito como quem olha para uma variante bacteriológica em um microscópio é o intuito do livro. Bem, mas há ainda um último elemento do romance que precisa ser acentuado: o humor na sua ligação umbilical com a singeleza. Rir dos outros é sempre uma baixeza que estraga o riso e inviabiliza a apreensão de seu traço mais radicalmente próprio a todos nós. Rir de si com os outros, por outro lado, é algo que nos aproxima das experiências que são essencialmente nossas. Há algo risível no sexo, na cena aparentemente esdrúxula de uma mulher fazendo sexo anal com um cintaralho munido de um vibrador; ou na repentina descoberta de um homem sério vestindo uma calcinha fio dental. Indubitavelmente há. O que existe de risível nesse caso, contudo, não é o que deve nos envergonhar e afastar de nós mesmos. Não, nunca. O risível é o que revela sem travas aquilo que a falsa vergonha insiste em apagar. É, em suma, a identificação com a cena que carrega aqui o risível e o que também nos aproxima daqueles com quem rimos. O riso aqui é expressão da descoberta do humano, demasiadamente humano em nós, em todos nós — é sexo como ética universal. E é por isso que esse riso busca, antes de tudo, nos cativar para que nos vejamos junto às cenas que o provocam. Eis aqui, então, uma pequena janela por onde podem ser descortinados alguns aspectos do texto, que ela possa funcionar como um convite para que os leitores, na ampla gama de possibilidades que se apresentam entre o “as” e o “os” e que a truculência teima em estigmatizar, se apropriem do sexo e o transformem ainda mais em experiência popular.
Marco Casanova é professor de Filosofia da UERJ e tradutor de livros de pensadores alemães, como Heidegger e Nietzsche. Ele lança o romance “Sexo, um assunto popular”, no sábado (26/08), às 20h, Espaço NET Rio, em Botafogo.