O ponto de partida para a maior virada da minha vida foi um ponto de interrogação. Como muitas mulheres que andam por aí, de bar em bar, de loja em loja, buscando bengalas e bússolas para encontrar o seu Norte, passei por uma grande crise, e não parava de me questionar: “O que eu não quero mais? Para onde quero ir? Quem sou eu mesmo?”
Ironicamente, estava no melhor momento de carreira, aos 36 anos, como executiva de vendas de publicidade da CNN Digital na Califórnia. Morava em Venice Beach, Los Angeles, a quatro quadras do mar, com ondas perfeitas para surfar. Tinha um escritório no alto de um prédio envidraçado, com vista para o letreiro de Hollywood. Levava uma vida de seriado, como diziam minhas amigas.
Parece difícil se deprimir num lugar tão incrível, com tanto sol e leveza. Mas eu consegui. Ganhava um bom salário em dólar (US$ 15 mil) e gastava a metade com roupas, cosméticos e restaurantes. Vestia um figurino bonito para desfilar naquele cargo, como se estivesse maravilhosamente bem por dentro. Comecei a circular com saltos mais altos e, na carteira, uma pilha de cartões de visita com o logo vermelho da CNN, capaz de inflar qualquer peito, mesmo que murcho por dentro. Sorria apenas com a boca, pois o rosto estampava o semblante de quem não estava inteira.
Comecei a desconfiar que eu era infeliz e não sabia. Passei, então, a questionar sobre o modo como estava levando minha vida, meus reais valores e falta de senso de propósito, d e missão mesmo.
Fui atrás da espiritualidade para me ajudar a olhar para dentro; senti uma paz incrível ao ouvir ensinamentos budistas. Conceitos, como transformar carma em missão e a lei da causa e efeito, conversavam com as coisas que eu sentia, mas que, até então, não reconhecia. A partir daquele dia, comecei a ir para a frente do espelho para me enxergar e me questionar: “Quem sou eu?”. Talvez eu devesse me tornar um ser humano melhor, parar de pensar só no meu umbigo.
O mergulho interior despertou em mim a vontade de fazer algo pelo coletivo, pela humanidade. Eu estava determinada a encontrar minha direção para resolver aquele buraco interno e me via em uma encruzilhada sem precedentes. Eu olhava para o sinal de Hollywood, e um filme passava na tela da minha vida — realmente, eu tinha chegado ao topo, mas resolvi saltar de paraquedas.
No corredor do escritório, havia um painel enorme com o mapa-múndi. No meu último dia, depois de me despedir dos amigos, em um gesto espontâneo, abri os braços, me agarrei àquela parede e brinquei: “Vou-me embora, abraçar o mundo”. Um colega fotografou aquele instante. Mal sabia ele, muito menos eu, que aquela frase era também uma profecia.
Corta.
Nova cena.
Minha iniciação no mundo humanitário, conhecendo de perto uma dura e diferente realidade para o meu trabalho de campo para pesquisa de mestrado, começava em um dos países mais pobres da África.
O cenário que eu via, com o rosto colado na janelinha do pequeno avião turboélice, não poderia ser mais árido, para não dizer desesperador. Malaui, aos meus olhos inexperientes, parecia um campo imenso, plano, desabrigado de verde, com pontinhos marrons de cabanas formando aldeias — uma cena que, até então, eu só conhecia dos documentários do Discovery Channel.
Depois de sobreviver à primeira noite num hotelzinho com mosquiteiro furado, às 7 da manhã, a caminhonete branca da Cruz Vermelha malauiana chegou e nos levou para o nosso primeiro trabalho de campo, nas aldeias ao redor de Salima, a 150 quilômetros ao norte da capital.
À medida que nos aproximávamos do povoado, em uma área mais urbana, chamava minha atenção a quantidade de funerárias e caixões de madeira expostos no acostamento da pista, de boca aberta para a estrada. Me dei em conta de que a maioria eram caixões muito pequenininhos, feitos para bebês e crianças — um retrato cruel do alto índice de mortalidade infantil na região.
Os caixões também chamavam atenção por ser um objeto de consumo tão comum quanto as frutas e verduras vendidas aos passantes: a normalização da morte prematura. Duro. As primeiras fotos que fiz em Malaui foram desses caixõezinhos; as imagens saíram tremidas. Pelo retrovisor, nosso motorista, Bernard, observou calado o movimento da minha câmera.
Ao chegar à aldeia, logo que desci do carro com minhas botas de trekking novas em meio a centenas de pés descalços, adultos me olhavam de longe, e crianças me cercavam com olhos curiosos. Aquela humanidade que até então eu desconhecia, em sua verdadeira forma, me agarrou como um ímã.
Durante quase três meses, sempre ouvindo a rádio local, nos sacudimos diariamente na buraqueira, percorrendo as aldeias do projeto com a minha equipe de “superamigos- salvando-o-mundo”. Em Kasache, o lugar mais remoto, vivi um dos momentos mais arrebatadores da missão.
Ao descer da caminhonete, dezenas de crianças me cercaram. Eu já sabia que a maioria delas eram órfãs de pais mortos pelas consequências de doenças, em grande parte HIV, e muitas também deviam estar infectadas sem receber tratamento. Algumas pareciam espantadas comigo; outras gargalhavam, me olhando, como se eu viesse do espaço sideral. Lucy me disse que a maioria, ali, nunca tinha visto uma mulher branca. Naquele instante, o filme de aventura virou ficção, e me senti literalmente uma ET. Em poucos minutos, fui me dando conta da real tragédia naquele pedaço estreito do mundo. Entendi os caixões pequenos na beira da estrada.
O tempo parou, e os espaços ainda vazios foram tomados por uma sensação de gratidão pela vida pulsante. Fazendo mímica, consegui juntar o grupinho inteiro com seus mais de 40 pequenos corações, em frente à escola, para um retrato. Forte. Bruto. Poético. Desesperador.
Convivendo diariamente com aquelas imagens e histórias no meu imaginário real, semanas depois, consegui finalmente voltar a Kasache, para entregar as fotos para o professor da escola. Foram as primeiras fotografias de seus alunos a que ele teve acesso. Colocou-as na parede da sala de aula.
Ao entrar, a primeira coisa que vi foi uma cópia pálida do mapa-múndi pendurado no fundo da parede de barro, rodeado de desenhos infantis feitos com giz de cera. Pausa. O mundo podia não saber da existência daquelas crianças, mas elas ainda tentavam entender as fronteiras que as esqueceram.
Corta.
Nova cena.
As portas da primeira missão humanitária para a tão sonhada Nações Unidas foram abertas pela Cruz Vermelha Internacional, por conta das missões de comunicação comunitária que realizei nos anos anteriores. Eu mal acreditava nos lugares aonde estava conseguindo chegar para levar o microfone.
Cheguei a Kampala, capital do país, vindo de Genebra via Amsterdam. A delegação da agência me conduziu ao aeroporto local para pegar a avioneta e ir para a região de Karamoja, no norte do país.
O piloto americano, antes de tomar seu lugar, fez uma prece em inglês, pedindo proteção para o nosso voo, porque aquele avião estava cheio de trabalhadores humanitários; por isso, era fundamental que pousasse em segurança para que todos cumprissem a missão.
É uma prática comum dos pilotos desse tipo de voo, mas, naquele momento, meus olhos se encheram de lágrimas: me dei conta de que é preciso ter muito amor para conseguir andar por esses recantos do mundo. Isso porque, na Uganda, eu ainda não tinha andado um terço do que os meus colegas que trabalhavam ali haviam percorrido.
Coloquei os fones de ouvido do celular e apertei o play na música “Moment of Surrender”, da banda U2 — são momentos para se render. Simplesmente me entreguei, ali, pensando: “Muito obrigada por estar aqui, cumprindo minha missão, mesmo que seja pequena, não seja em campos de refugiados ainda, porque esse será o meu próximo passo”.
Agradeci por todas as forças que ali se faziam presentes para que eu pudesse contribuir, fazendo a minha parte como comunicadora comunitária.
Foto: Alex Ferro
Fernanda Baumhardt é jornalista formada pela Unisinos, com mestrado em Gestão Ambiental pela Universidade Livre de Amsterdam. No dia 19 de agosto, Dia Mundial Humanitário, lança “Vozes à Flor da Pele” (Editora Lacre), na Livraria Janela, no Jardim Botânico. Fernanda começou a carreira na área de Publicidade, nos canais Bloomberg e CNN. Pratica Budismo há 15 anos e participou de mais de 40 missões e projetos em comunidades de 30 países, atuando com a Cruz Vermelha Internacional, diversos órgãos das Nações Unidas (ONU) e Conselho Noruego para Refugiados. Paralelamente criou, em 2010, sua própria organização, a Proplaneta. Em 2009, recebeu o prêmio “Imagens e Vozes de Esperança”, em NY, que reconhece profissionais de Comunicação atuando no mundo como agentes de mudança.