Nasci em 1984. Assisti a novelas, sonhei em ser Paquita e brinquei de Barbie.
Falando assim, parece uma infância desinteressante, de uma geração filha de pais liberais, que sonhavam com independência e crescimento econômico — ou que, simplesmente, pensavam menos sobre a criação dos filhos. Olhando para trás, contudo, sinto a nostalgia dos sonhos e a imaginação constante. E a Barbie teve grande responsabilidade nisso.
A cada manhã, eu enchia o chão do quarto de casas, escritório, carro, família, amigos. A Barbie me ensinou a lidar com o tédio, o tempo e com a minha deliciosa e exclusiva companhia.
Essa semana, senti uma irresistível vontade de me vestir de rosa. E assim fiz, sem entender bem de onde vinha e em que bolsa eu havia guardado esse pertencimento pelos últimos trinta anos. Embora vindo de Greta Gerwig, eu sabia que podia esperar algo que honrasse o meu feminismo; para me preparar para o filme, fui ler e pesquisar sobre o retrospecto da Barbie em relação à diversidade.
Claro que teria sido melhor brincar com as Barbies de hoje, que incorporam aparelho auditivo, perna mecânica, vitiligo, cintura viável, 35 tons de pele diferentes e 94 versões de cabelo. Apesar de a primeira Barbie negra ter surgido em 1980 (as bonecas negras anteriores, dos anos 60, eram Tammy, Misty, Christie, amigas da Barbie), entendo que a boneca poderia ter nos ensinado mais sobre o diverso. Inclusive, devo dizer, nos biótipos do Ken – por que, por exemplo, a boneca não poderia se apaixonar por uma pessoa menos sarada que a fizesse rir?
Ainda assim, a Barbie desenrolou um papel relevante na minha formação, ao me ensinar que eu podia ser o que quisesse: astronauta, engenheira, médica, veterinária, estudante, rapper, bailarina, sereia. Quando cheguei ao cinema hoje, toda vestida de rosa e vi a quantidade de pessoas iguais a mim (adolescentes de diferentes tons de pele, mulheres da minha geração, queers…), entendi o grau de identificação que essa boneca gerou ao longo dos anos.
Na fila da pipoca, enquanto conversava com uma mãe de quarenta e uma filha de doze, voltei a me questionar por que tantos homens foram escalados nos jornais para fazer as críticas do filme. Um homem hétero, com todo o respeito, jamais vai entender o que a Barbie significa para nós mulheres, nem o eco velado sobre feminismo, independência e ressonância que ela invoca. O filme da Greta Gerwig é sobre isso. E mais.
O tema ali é a beleza da imperfeição. Cheio de referências à história e evolução da Barbie, o filme é uma crítica bem feita, didática e engraçada ao patriarcado. Mas também, numa segunda camada, traz uma reflexão sobre quão belo é o inesperado, as falhas, as mudanças a que a vida nos impõe, ao mesmo tempo em que o mundo nos exige uma felicidade estática e inabalável.
Barbie fala da alegria de ser simplesmente só mais uma, de não ter expectativas paralisantes nos ombros e, talvez por isso, ser capaz de realizar pequenos feitos espetaculares a cada dia — ou grandes feitos, ou o que quisermos.
Um roteiro inteligente, polvilhado de ironia e boas tiradas, um universo incrivelmente construído, e atuações poderosas, com destaque, devo dizer, para Ryan Gosling, que não teve vergonha de se jogar no Ken.
Saí do cinema feliz pela Greta, pela Barbie e pela minha infância. Fui advogada, trabalhei no mercado financeiro por dez anos e hoje sou escritora com dois romances publicados. Aprendi, com a Barbie, que posso ser o que quiser.
Mayra Sotto Mayor é escritora, atenta a temas femininos, como em sua estreia na literatura, “Bordados Imperfeitos” (2019), quando tratou de dilemas amorosos de jovens mulheres da Zona Sul carioca; depois veio “Meu Mar Te Espera” (2022), com prefácio de Leo Aversa e orelha de Bruno Astuto. Mantém um “Clube de Contos” em suas redes (@mayra.s.mayor).