Minha mãe, Camilla Amado, costumava repetir uma citação de Sartre que dizia: “O homem só é livre quando suporta a angústia da liberdade de sua escolha”. Ela falava sempre valorizando “a angústia da liberdade”, sílaba a sílaba. Essa frase sempre ressoou em sua vida – e na minha. Ela enfrentou as angústias das escolhas que fez ao longo de sua jornada — fazia o que queria e quando queria. Não se submetia, não se dobrava. Ela pagava o preço pela liberdade de ser uma artista, de ser uma artista verdadeiramente livre.
Além de ser uma atriz excepcional, minha mãe tinha uma capacidade única de enxergar as pessoas. Seja como professora e preparadora de atores, seja em conversa com um desconhecido na rua, em poucos minutos, ela era capaz de decifrar a alma da pessoa, o que nem sempre era confortável. Superficialidades não tinham espaço em sua vida – ela era intensa o tempo todo. Lembro-me de várias conversas que tivemos quando eu era adolescente, em que reclamava que ela nunca falava sobre assuntos banais, pois cada conversa era sempre profunda e definitiva.
A minha “angústia da liberdade”, assim como a dela, é a escolha pelo teatro. O teatro, como arte artesanal e efêmera que é, exige coragem, disposição e humildade. Assim como ela e como minha avó, a educadora Henriette Amado, também encontrei na educação, na formação de atores, um meio de comunicação, uma forma de distribuir o conhecimento e o amor pelo teatro. Sempre precisei me disciplinar; no teatro, encontrei esse lugar. O teatro me acolheu, e ali criei minhas raízes, minha família e meus amigos.
Em “Cartas para Gonzaguinha”, o musical que tenho a honra de dirigir, com 18 talentosos jovens atores, há um momento em que um personagem diz: “A liberdade é um sonho que exige coragem”. Agora, enquanto escrevo este texto, percebo como José, nosso protagonista, e minha mãe estão dizendo a mesma coisa. Quando João Bithencourt e Nanan Gonzaga, os idealizadores do espetáculo, me convidaram para dirigir “Cartas para Gonzaguinha”, não queríamos criar apenas um musical biográfico – queríamos que as palavras de Gonzaguinha fossem a própria peça. Ele era um compositor que falava diretamente ao coração do homem comum, da mulher comum, de todos nós, brasileiros. Era preciso trazer esse sentimento para a cena.
Em 2018, depois de quatro anos de tentativas frustradas em busca de patrocínios, decidimos que era hora de levar a voz do poeta ao palco, de qualquer maneira. Foi então que oferecemos a ideia de produzir o espetáculo através de uma prática de montagem para o CEFTEM, a escola de musicais do Rio de Janeiro. Acredito que esse formato seja um celeiro para novos artistas e produções atualmente. Junto com Thiago Rocha, dramaturgo, embarcamos na criação da história de José e João, dois trabalhadores de uma fábrica de cadeiras que enfrentam as dificuldades do cotidiano diante de um sistema político e econômico que oprime o trabalhador. O pano de fundo do espetáculo se baseia em duas histórias reais: o atentado à bomba no Riocentro, em 1981, e uma campanha lançada pelo próprio Gonzaguinha na década de 1980, em que ele questionava as pessoas: “O que é a vida?” Essa campanha resultou em um de seus maiores sucessos, “O Que é o Que é”.
Em 2019, logo após as eleições, quando o País estava polarizado e vivendo a angústia de suas escolhas, tivemos a estreia do nosso espetáculo. Foi nesse momento que a força da poesia de Gonzaguinha, aliada ao poder único do teatro de tocar e transformar as pessoas, resultou em inúmeras temporadas de sucesso tanto no Rio como em todo o Brasil. Não importa onde estejamos, a peça consegue tocar o público de forma profunda, fazendo com que eles se emocionem, vivam e se identifiquem com a história dessas pessoas comuns que Gonzaguinha canta. Lembro-me da minha mãe, quando assistiu ao espetáculo, dizendo que era “uma peça do povo para o povo”. Ela tinha razão. “Cartas para Gonzaguinha” fala para as pessoas comuns; talvez, por isso, sejamos tão felizes ainda cinco anos depois. Voltamos à casa onde estreamos, o Teatro Riachuelo, no Rio, transformados, amadurecidos, e vivos, porque, sim, a arte existe para que a realidade não nos destrua.
E mais uma vez repetindo as citações de minha mãe: “O maior legado da tragédia grega foi mostrar à humanidade que, por trás de qualquer circunstância, por mais terrível que seja, a essência da vida é indestrutivelmente poderosa e alegre.” (Friedrich Nietzsche). Gonzaguinha é isto: canta as tragédias cotidianas com alegria e entusiasmo pela vida.
Rafaela Amado é atriz, bailarina e diretora. Começou os estudos em 1986, na CAL e, quatro anos depois, conheceu Antonio Abujamra, como quem criou a Cia. Os Fodidos Privilegiados, no Teatro Dulcina. Em paralelo, fez parte da Cia de Atores Bailarinos do RJ, sob a direção de Regina Miranda, onde participou de inúmeros espetáculos como atriz e bailarina. Também atuou em várias novelas na TV. Atualmente dirige “Cartas para Gonzaguinha”, em cartaz no Teatro Riachuelo, no Centro, dias 8, 9, 15 e 16 de julho, às 20h. Ingressos no Sympla.