Há cinco anos, a produtora Juliana de Carvalho me fez um desafio: produzir um documentário sobre São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, uma das maiores cidades do mundo, e os povos que ali habitam. Aceitei, claro, mas, com o tempo, me dei conta de que seria algo muito complexo e quase impossível de se incluir em um filme de 90 minutos.
A Cabeça do Cachorro, região do Brasil que eu desconhecia, foi batizada pelos militares. A área no extremo noroeste do Brasil, estado do Amazonas, é região de fronteira com a Colômbia e Venezuela. A princípio, fiz o dever de casa – li bastante, estudei e busquei, no meu método de trabalho e nas minhas reminiscências cinematográficas, uma maneira de conhecer e registrar aquela realidade.
A região era completamente diferente de outros lugares por onde eu tinha viajado pelo Brasil e pelo mundo. E olha que o cinema já me levou para vários lugares!
Nas primeiras incursões de barco a regiões como Taracuá e Yuaretê, na fronteira com a Colômbia, vi aldeias, floresta bastante preservada, pessoas se comunicando em diversas línguas (mais de 18). Ao mesmo tempo, deparei com colégios salesianos do início do século, época da catequese, ou um ou outro indígena com um aparelho de celular na mão se comunicando com seus parentes. São indígenas Hupda, Arapaso, Baniwa, Ianomâmis e de outras etnias com histórias que encontram confluência no rio Negro.
Era lugar onde o tempo é relativo, uma mistura dos séculos XIX, XX e XXI ao mesmo tempo, como um museu a céu aberto. O passado, o presente e o futuro se misturavam com a vida daquelas pessoas. E como a relação cruel que tiveram com os colonizadores marcou as suas vidas para sempre.
Posso falar do drama, por serem escravizados pelos “regatões” (comerciantes ambulantes locais), a catequese forçada, depois os missionários evangélicos demonizando suas tradições, ou, mais recente, na ditadura, a construção de uma estrada inacabada que levou o sarampo para as terras ianomâmias. A última das levas todos sabemos: madeireiros, mineração e narcotráfico nas terras sagradas dos povos da floresta.
Apesar de tanta dor, o relacionamento com os protagonistas de “O Contato”, documentário produzido pela Bang Filmes, que vai ser lançado no circuito comercial ano que vem, mostrou que a força deles está ligada aos seus valores ancestrais, que, apesar da tentativa dos “brancos” em conquistarem suas almas, permanecem presentes e os fazem viver. Como sinal de gratidão e como devolutiva para a sociedade, pretendemos, além do circuito comercial, levar o filme para ser exibido em lugares, como São Gabriel da Cachoeira, Manaus, Brasília, Belém etc., além de buscar parcerias com órgãos do governo Federal, como a Funai e organismos internacionais, a Unesco, por exemplo. Acredito que tais parcerias nos ajudarão a amplificar a “voz” do filme e seu alcance.
São seres humanos como todos os que habitam o nosso lindo Planeta, com seus anseios, medos, desejos e ambições. Seus afetos são tão comuns, como o caso de uma mãe que viaja mais de 500 km de rio para ver a filha que está sob tratamento médico em São Gabriel da Cachoeira, ou a família que leva o filho pequeno para conhecer a bisavó na aldeia materna a mais de 600 km de distância. E não existe uma história mais comum que o desejo do filho em manter a memória do pai já falecido, estampada em uma fotografia?
São Baniwa, Hupda, Ianomami, Arapaso, entre outras etnias, abrindo seus corações, contando suas vivências, seu cotidiano e suas memórias.
São essas histórias singelas, porém complexas, que narro em “O Contato”, meu mais recente filme. Elas me comoveram e fizeram me aproximar desses povos por sua HUMANIDADE , que eles ainda possuem apesar dos pesares, e que nós, “brancos”, infelizmente perdemos: a ancestralidade.
Não é à toa que se escreve muito sobre a crise da sociedade ocidental, turbinada por um materialismo que nos afastou do nosso corpo, da nossa alma, do sagrado, do transcendental, enfim, da nossa essência como espécie.
Sem medo de cair em um lugar comum, posso dizer que temos infinitamente muito mais o que aprender com eles do que eles, conosco. Nós somos iguaizinhos a eles, porém fracassamos como modelo de civilização. Salve o povo indígena no seu dia e sempre!
Foto: Emerson Muniz
Vicente Ferraz, carioca, é cineasta, formado em Comunicação pela PUC-Rio. Estudou também na EICTV — Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba. Seu primeiro filme foi o documentário “Soy Cuba, o mamute siberiano” (2004), com o qual ganhou o prêmio de melhor documentário e melhor filme segundo a crítica no Festival de Gramado (RS). Seu recente trabalho “O Contato” participa do “Festival é Tudo Verdade”, que vai até dia 23 de abril, no Rio e em SP.