Anos atrás, um amigo, produtor musical, me indicou para ser jurado de escola de samba. Ponderei que não reunia as condições exigidas pela Liga: notável conhecimento carnavalesco e reputação ilibada. Ele respondeu citando a admissão de uma socialite radicada em Miami e, quanto ao segundo quesito, de um miliciano em liberdade condicional. Me senti apto a assumir a presidência do júri.
Duas chateações: um cursinho prévio com o Milton Cunha e não ingerir álcool durante o desfile. Se o Carlos Imperial fosse o examinador eu teria tirado dez – nota deeeez! – no teste, mas como eram o Pamplona e o Haroldo Costa, passei com um 5, após revisão. O bafômetro eu driblei com minha pochete multifuncional.
Crachá da Liesa no peito, roupa imparcialmente branca, planilha de pontuação e um patuá para me livrar de tentações calipígeas — no meu caso, a mais nociva a um julgamento isento —, lá fui eu para a envidraçada cabine no setor 4.
Criterioso, estreei me metendo em tudo que é quesito. Um botão faltando na fantasia, lá ia um décimo. Uma pluma desprendida do esplendor, dois. Crocs branco no pé, rebaixamento. De acordo com o volume de botox, considerei muitas bundas, peitos e até bocas como alegorias e adereços. Fica a dica.
Atento à cartilha da diversidade e da inclusão, fui rigoroso no quesito evolução: derrapada de cadeirante, baiana idosa desgarrando da ala por queda de pressão, baluarte mancando sem bengala, indio sem dançar o Quarup… tudo anotado em vermelho.
Ah, o samba-enredo. Desde que ouvi o ‘Samba do crioulo doido’ do comunista Stanislaw Ponte Preta, não dou bola para as letras. E desde que os puxadores passaram a contar com apoio vocal para cantar só uma horinha, os desprezo. Afinal, eu iria aguentar duas noites seguidas ouvindo aquela mesmice, mais repetitiva que o Bolero de Ravel, sem direito a suplente. Qual é?
O que me interessa é se a música tem aquela pegada afro-ancestral tipo ahouach, guedra, schikatt ou gnawa. Sou raiz. Jongo da Serrinha para mim é apropriação. Na bateria, ‘paradinha’ é sinal de fadiga e, batida funk, de mau gosto.
Às evoluções colonialistas afrancesadas do mestre-sala e da porta-bandeira, prefiro as rainhas de bateria apesar dos estereotipados passinhos no melhor estilo Coisinha de Jesus, personagem inesquecível da turma do Casseta e Planeta.
Missão cumprida, ao abrirem meu envelope, vi pela cara do apresentador que vinha merda por aí. Minhas notas foram descartadas e sai escoltado da Praça da Apoteose sob estrepitosa vaia. Até hoje sou ameaçado por patronos de várias agremiações. Já a socialite, que passou o desfile postando selfie, e o miliciano conferindo o pix, continuam firmes.
Se nada de ruim me acontecer, ainda tento uma vaga no Estandarte de Ouro em 2024. A ver.