“Mora na filosofia:
Pra quê rimar amor e dor?”
Porque é tentador.
A língua pede, e nossa alma dolentemente africana, liricamente lusitana, pachorrentamente tupi acata, sem pensar duas vezes.
Na língua de Bob Dylan, Stephen Sondheim e Cole Porter, love & pain não dividem as sílabas finais de versos alternados.
“Love” rima (e mal) com dove, glove, above. Sim, o amor pode cair como uma luva, ser fugidio como uma pomba e estar em algum lugar acima de nós, mas passa longe de “pain” — que rima, e bem, com rain, gain, train, main, brain, chain, plain, vain.
É, a dor ganha disparado do amor na busca por um par. E dá-lhe detain, disdain, refrain, domain, remain, explain.
Se fizesse samba em inglês, Monsueto diria que a dor não se explica, não se refreia, não se desdenha. A dor é vã, é um trem que nos acorrenta (isso se falasse inglês mineiro) e não se detém. Que nos tira o mais importante e nos deixa debaixo de chuva. O que está sob seu domínio permanece. Com o cérebro reduzido a um grão (eu tinha me esquecido de citar grain).
Outra palavra com a qual nossa alma gentilmente tupi, amorosamente africana, violentamente lusitana se deleita é “coração” — que rima (ainda mais se for um samba-canção) com paixão, ilusão, solidão, oração, aflição, traição.
Não em inglês. Na língua de Paul McCartney, Leonard Cohen e Bernie Taupin, “heart” rima é com art, start, smart, part, fart. E com apart, depart, a la carte.
Difícil rolar um bolero, uma seresta com um coração esperto, que começa e já parte. Um coração como está no cardápio, sem status de arte. Talvez até rolasse um cheek-to-cheek com Humphrey Bogart, e é melhor nem pensar nas demais rimas.
Não. Coração tinha que ser mesmo esse falso aumentativo para conter e ecoar tanta passion, prayer, illusion, affliction, betrayal, solitude.
Só nossa alma inocentemente tupi, sofridamente africana, desgarradamente lusitana para fazer com que sempre rimem, nas sofrências mais bregas, morte e sorte. Abraço e fracasso. Cerveja e cê veja. Morno, retorno e corno.
Pra quê rimar vida e despedida? Sonho e medonho? Medo e brinquedo? Triste e sorriste?
É a língua que nos empurra para essas antíteses, esses paradoxos.
“Se a rosa tivesse outro nome, ainda assim teria o mesmo perfume”, escreveu Shakespeare. O mesmo perfume, não a mesma rima. Hose, pose, nose, close não chegam nem perto, não dão nem pro cheiro de poderosa, graciosa, mentirosa, ansiosa, venenosa, perigosa, dolorosa, indecorosa.
A língua latina ajudou a moldar nossa alma, nossa forma de ver o mundo. Em espanhol também rimam amor y dolor. E em italiano, amore e dolore. Mas só aqui, no português, a palavra “dor” é tão concisa, tão contundente. Uma dor quase calada, monossilábica.
“Se seu corpo ficasse marcado
Por lábios ou mãos carinhosas,
Eu saberia — ora, vá, mulher!
A quantos você pertencia”
Saberia (cadenciadamente tupi-guarani, africanamente escandida, “a palavra com as suas sílabas todas / Sem perder sequer um quinto de vogal”, como escreveu lusitanamente Sophia de Mello Breyner Andresen), pertencia.
Toda rima mora na filosofia.