Fui à Casa Roberto Marinho (Cosme Velho) ver a exposição Miró + Calder, com curadoria de Max Perlingeiro. Além de apresentar trabalhos de altíssima qualidade, a mostra documenta a afinidade entre essas duas mentes criativas, que se esbarraram pela primeira vez em Paris, em 1928, quando o americano Alexander Calder já havia ganhado a simpatia de críticos e colecionadores, e o catalão Joan Miró era um dos mais importantes pintores surrealistas. Não se largaram mais. Perlingeiro se refere aos muitos estudos sobre a relação desses dois artistas como “estética de uma amizade”. Apesar das personalidades discrepantes — Miró era tímido e reservado; Calder, extrovertido e extravagante —, nasceu entre eles uma vontade de estar junto ou, talvez mais do que isso: de pensar junto.
E a mostra, essa espécie de ode ao encontro e ao diálogo, me fez pensar naquelas pessoas que vamos encontrando ao longo da vida: alguns que só a cruzam, outros que permanecem até seu fim. As raras afinidades — intelectuais e afetivas, de ser e estar no mundo — que acontecem entre os humanos. Dois estranhos podem se aproximar por uma série de razões, mas se juntam mesmo porque querem compartilhar um conhecimento, uma visão, um assunto, uma impressão. Esse tipo de encontro é fruto de interesses e paixões comuns entre pessoas de sexos, origens, credos, ocupações, idades distintas. É uma vontade de continuar a conversa, de querer saber o que o outro pensaria sobre determinado assunto, como reagiria numa circunstância, o que faria com uma informação, como seria afetado por um acontecimento.
Uma conexão cerebral, o verdadeiro atravessamento que se dá entre duas pessoas. Além de Calder e Miró, como não pensar no encontro entre os artistas Marcel Duchamp e Maria Martins? O francês e a brasileira se aproximaram por essa fagulha imprescindível da troca de ideias, processos, narrativas, técnicas em seus trabalhos. Um desejo mútuo de se expressar, de compreender ou ser compreendido, de apreender o mundo, de trazer à tona o que habita seus universos interiores ou, parafraseando a cineasta Agnès Varda: as paisagens que encontraríamos dentro das pessoas caso pudéssemos abri-las. Ou na correspondência que durou mais de 50 anos entre Hannah Arendt e Martin Heidegger? Considerada uma das pensadoras mais importantes do século XX, a aluna que ultrapassou o mestre nunca deixou de se corresponder com ele, apesar das discordâncias políticas e ideológicas. O combate argumentativo povoado de saber, erudição, bom texto e entrelinhas fascinava a ambos. Ou no encontro entre o escritor Voltaire e a matemática Émile ou Marquise du Châtelet, uma das responsáveis por disseminar o pensamento de Isaac Newton na França do século XVIII?
As conversas brilhantes entre os dois aconteciam nas montanhas de Champagne e numa biblioteca de mais de 21 mil volumes e provocavam inveja: parecia um desperdício que aquele mundo de saber fosse compartilhado apenas entre duas pessoas. Mas, no fundo, perseguiam o que a autora do livro “Voltaire in love”, Nancy Mitford, chamou de “amours philosophiques”. Talvez a forma de troca mais profunda e mais difícil entre duas pessoas seja esta: a que acontece por debaixo da pele, no espasmo do entrelaçamento das mentes.
Verdadeiros atravessamentos entre pessoas rendem trabalhos artísticos, movimentos, revoluções, grandes projetos, utopias: Marx e Engels, Deleuze e Guattari, Gil e Caetano, Tarsila e Oswald são só mais alguns exemplos de encontros que marcaram suas vidas. (E as nossas.)
Luiza Mussnich nasceu no Rio, em 1991. É jornalista e mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. É autora dos livros de poesia “Tudo coisa da nossa cabeça”, “Lágrimas não caem no espaço”, “Para quando faltarem palavras” e “Microscópio”, todos pela Editora 7letras.