Assim como nos hotéis e restaurantes há alas para fumantes e não fumantes, os shows deveriam ter sessões específicas para manifestantes e para os que querem apreciar a música e ouvir o artista.
O repertório poderia ser o mesmo — o que mudaria é que, nas sessões para fãs, haveria aplausos ao fim das canções e ovação de pé na hora do bis. Nas sessões para fanáticos, o artista faria uma pausa maior entre os números para que a plateia pudesse gritar “Mito!” ou “Lula!”. E naquela hora em que o cantor vira o microfone para o público cantar junto, o refrão seria deixado de lado e substituído por “Fora Temer!”, “Lula livre!”, “Fora Bolsonaro!”, “Ladrão!” (este, em uníssono), “Não vai ter golpe!” etc.
Nas sessões para fãs, ao se acenderem as luzes, estariam todos irmanados no encantamento pelo artista, pela banda, pela energia que emana do palco. Nas dedicadas aos fanáticos, os dedos indicadores ora estariam apontados para cima, ora para a testa do ocupante da cadeira ao lado. De tanto berrar, os espectadores se apresentariam mais afônicos que o cantor. Os gritos de “Fascista!” e “Comunista!” ecoariam pelo foyer e, já na calçada, evoluiriam para sopapos e alusões a práticas sexuais não ortodoxas consigo mesmo e à antiquíssima profissão da mãe alheia.
Caetano cantaria:
“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem.
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final”
E cantaríamos juntos (no espetáculo de sexta) – ou tudo que é ainda construção já seria ruína (no de sábado).
Chico proporia:
“Que tal um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo
Coração pegando fogo e cabeça fria
Um samba com categoria, com calma
Cair no mar, lavar a alma
Tomar um banho de sal grosso, que tal?”
E aceitaríamos o convite para um trago, um desafogo, um devaneio, para espantar o tempo feio, para remediar o estrago.
Isso na sessão de sexta, porque na de sábado a audiência partiria para a ignorância, para a demência, para a força bruta, com uma dor filha da puta. Que tal?
Nas sextas, Milton nos lembraria que sonhos não envelhecem; que quem traz na pele esta marca possui a estranha mania de ter fé na vida.
Nos sábados, a plateia carregaria, no andor de nossos novos santos, o sinal de velhos tempos: “Morte, morte, morte ao amor!”.
Nas sessões de sexta, para fãs, redescobriríamos o Brasil. Nas de sábado, para fanáticos, sequer perceberíamos haver um Brasil no palco.
Nas de sexta, o Brasil mostraria a sua cara. Nas de sábado, poderíamos nos perguntar quem é que paga pra gente ficar assim.