“Percebi que alguma coisa estava muito errada quando levei 15 minutos imaginando como atravessar dois quarteirões da minha casa até a padaria. Na minha cabeça, era um esquema de FBI: saio às 3 da tarde, porque a possibilidade de encontrar alguém na rua é menor. Passo pela banca de jornal, dou um aceno com a cabeça pra moça da banca e tenho a certeza de que ela pensa: ‘Essa mulher não tá bem.’ Não tô mesmo, moça…”
Essa é uma das cenas da minha peça “Na medida do impossível”.
Em uma noite durante a pandemia, resolvi escrever sobre o que me atravessava há tempos: pânico. Um golpe sorrateiro no rosto, no seu corpo, quando você menos espera, como se você tivesse um jarro de ansiedade que transborda dentro do peito, encharca seu corpo de suor e a paralisa.
Comecei a ter pânico, minha vida mudou: os pequenos obstáculos pareciam intransponíveis. Procurei ajuda médica, fui medicada e faço terapia toda semana. Em fevereiro de 2020, eu estava pronta para voltar às minhas atividades, mas veio a pandemia. Que timing! Bem agora? E se eu tivesse que explicar tudo que estava acontecendo para um amigo que morreu em 1996? E foi isso que eu fiz: escrevi uma peça para um amigo morto.
Depois de 26 anos, o mundo é outro, nós somos outros e, muitas vezes, não nos damos conta e queremos responder às nossas expectativas sobre nós mesmos.
A personagem é uma mulher que vive sua própria pandemia, não sai de casa há anos por causa de uma síndrome do pânico, vive em sua prisão e, na solidão das noites insones, tenta entender como chegou até ali.
Os filhos adultos, a Síndrome do Ninho Vazio, a perplexidade diante do tempo, um espelho do que cada um de nós passou nos últimos tempos. Como voltar a viver? Como interagir com seres humanos? O medo, o céu sobre as cabeças, o pânico, as mudanças operadas em nós durante o tempo em que vivemos isolados. Quais são os limites que nós mesmos nos impomos, mesmo sem querer?
Nesses novos tempos, precisamos falar, trocar, sobre o que nos angustia, tirar nossas neuroses do armário – ninguém tá bem. Por que nos escondemos ainda? Por que disfarçamos quem somos e o que nos dói? Saúde mental não pode ser um tabu tão grande em 2022.
Se alguém tem uma perna quebrada, não vai conseguir esconder, e ninguém vai dizer: “Ah, para com isso, é só pular corda e correr 5 quilômetros que a sua perna vai ficar boa”. É visível a dor, está ali, tem um gesso em volta. As dores emocionais não, são dores sem testemunha, a não ser nós mesmos e as poucas pessoas nas quais confiamos para dividir isso.
Na medida do impossível, todos estamos reaprendendo a viver — que seja juntos, nos olhando nos olhos, trocando, acolhendo, desconstruindo. E o teatro é o lugar ideal para fazermos isso. Vamos ao teatro, esse é um ato de resistência em tempos em que a cultura do País está sendo achacada pelos governantes. Vamos falar de saúde mental. Vamos rir de nós mesmos. Juntos sairemos dessa.
Luciana Fregolente é atriz, roteirista e está em cartaz, até 1º de outubro, com a peça “Na medida do impossível”, no Teatro Candido Mendes, em Ipanema, com texto dela e direção de Victor Garcia Peralta. Luciana escreveu para o núcleo de humor da TV Globo de 2014 a 2021 — concorreu ao Emmy Internacional por “Zorra”, em 2016 e criou o quadro “Mulheres Fantásticas” (Prêmio Le Blanc de 2020). Como atriz, participou de várias novelas. Amigos há 15 anos, Peralta e Luciana foram parceiros de trabalho na comédia “Alucinadas”, que estreou nos palcos, em 2010. Foi o primeiro a ler “Na medida”: “A Luciana trata o pânico com leveza e humor, mas sem tirar a profundidade que o assunto requer. Com a pandemia, ninguém escapou das sequelas emocionais, e é preciso falar disso urgentemente”.