É difícil dizer quanto tempo demorei para escrever meu terceiro romance, “Os Coadjuvantes”, publicado em abril pela Companhia das Letras. No início, era um romance autobiográfico sobre minha luta contra a depressão: fui diagnosticada aos 12 anos e passei uma década com dificuldade de viver uma vida normal, como ir à escola e ter amigos; enfim a doença foi estabilizada, mas tive uma grave recaída, em parte, por conta de eventos externos que mexeram muito comigo. Fui internada por um mês, em abril de 2016. (Atualmente, estou já há três anos sem medicação, bem e feliz). Há um pouco disso no livro, mas não muito; afinal, todos os meus livros falam pelo menos um pouco sobre depressão. É parte fundamental da minha história.
A verdade é que o livro que eu estava escrevendo não estava bom. Não havia distanciamento para que eu moldasse a personagem de modo interessante. Há uma frase certeira sobre a relação entre literatura e a sofrimento que é atribuída ao poeta Robert Frost. Ele diz: “I lost my nearest friend in the one they called the Great War. So did Achilles lose his friend in war, and Homer did no injustice to his grief by writing about it in dactylic hexameters … Such grief can only be told in form … Without it you’ve got nothing but a stubbed-toe cry – sincere, maybe, for what that’s worth, but with no depth or carry. No echo. You may have a grievance but you do not have grief”. (“Perdi meu amigo mais próximo naquela que eles chamaram de Grande Guerra, assim como Aquiles perdeu seu amigo na guerra, e Homero não fez injustiça à sua dor ao escrever sobre ela em hexâmetros dactílicos… Essa dor só pode ser contada em forma… Sem ela, você não tem nada além de um grito de ponta-de-pé – sincero, talvez, pelo que valha a pena, mas sem profundidade ou carga. Nenhum eco. Você pode ter uma queixa, mas você não tem tristeza.”). Este livro autobiográfico, que eu acabei por jogar fora, era isto: sincero, mas sem profundidade. Era desabafo, não era literatura.
Até que veio a eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro. Eu, às vezes, penso numa frase de um artigo de 2019 escrito pela Eliane Brum no El País: “Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias no presidente da República”. Quer dizer, talvez não àqueles que continuam a vida entre almoços e jantares e viagens e compras sem se preocupar com o preço do gás, gasolina e supermercado. Esses, provavelmente irão votar para sua reeleição – mesmo com 118 milhões de brasileiros sem acesso permanente à comida, mais da metade da população do Brasil.
“Os Coadjuvantes” fala sobre o encontro de uma jovem curadora de arte e a ambulante que vende cerveja na porta da sua casa. Não é um livro panfletário, não menciona políticos nem partidos, mas o cerne do livro nasceu do meu choque ao perceber que a maioria do país achava moralmente aceitável votar num sujeito que defende a tortura, inclusive pessoas da minha família. A corrupção dos governos anteriores era apenas uma justificativa – afinal, somente aqueles muito ingênuos acreditavam que as pessoas que estão hoje no poder federal eram idealistas e ilibados. De repente, escrever um romance que fosse focado nas minhas dores pessoais soava fútil, ser tão autocentrada parecia fora do tom. Somente a ficção poderia dar conta de entender um pouco o que acontecia no país.
Durante a escrita, eu relembrava algumas situações que havia presenciado e que nunca me desceram muito bem. Na juventude, quando ainda morava na casa dos meus pais, costumava ir à missa na PUC. Eu ficava perplexa ao perceber que aquelas pessoas com roupas tão caras tinham uma complexa falta de compreensão das palavras de Jesus. Ele não disse que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus!? E que sentido tem fazer caridade para ajudar as crianças carentes se o dinheiro doado é apenas um trocado perto do que é gasto com consumismo?! Não leram a parábola da viúva pobre? Está em Lucas, versículo 21.
É sempre difícil dizer sobre o que se trata a própria obra. Porém, aqui, arrisco dizer que minha motivação para esse romance foi compreender a completa desconexão entre a autoimagem das classes altas (virtuosos, cultos, sofisticados) e a realidade.
É um grupo de pessoas que gosta de pensar que sua ética e estética esão próximas das do Fernando Henrique Cardoso, mas, na realidade, tem a alma do “Vivendas da Barra”. Em “Os Coadjuvantes”, eu tento entender como se dá essa dicotomia.
Clara Drummond, 35 anos, é uma jornalista e escritora brasileira radicada em Lisboa. É autora dos romances “A festa é minha e eu choro se eu quiser” (Editora Guarda Chuva, 2013), “A realidade devia ser proibida” (Companhia das Letras, 2015) e “Os Coadjuvantes” (Companhia das Letras, 2022).